A primeira crônica

Eu tinha uns quinze anos de idade – foi há quarenta e cinco anos! – quando escrevi a minha primeira crônica; estudava no seminário em Santa Catarina e não sabia absolutamente o que é uma crônica. Isso não tem importância: pouca gente sabe o que é e ninguém sabe dizê-lo com precisão. Todo mundo tem uma idéia muito vaga e eu deveria ter essa idéia vaga, que é o que basta.

Tínhamos feito uma excursão ao morro Funil, o ponto mais alto de Santa Catarina, e me pediram para fazer um texto para a revistinha que iria guardar as recordações de nossas férias e que se chamaria Cãibra de Saudades porque um dos participantes tivera uma cãibra de sangue na volta. Pelo menos já tínhamos senso de humor. Eu mesmo chamei a minha crônica A Cabana do Desespero: por que a nossa cabana era verde, cor da esperança. E choveu no primeiro dia, a chuva entrou toda na cabana, estrategicamente montada aos pés do morro. No segundo dia geou, as roupas e os calçados ficaram duros de gelo. Um colega pôs as botas para secar junto ao fogo e queimaram. Foi semeada de pequenas calamidades, a nossa aventura. A polenta queimada, um tiro que derruba o Padre Reitor no rio, uma dor-de-barriga que deixa um dos mais afoitos de nós todo lambuzado.

Eu não sabia o que era, mas a história tinha tudo para dar uma bela crônica. Eu já sabia que tinha de trabalhar a linguagem. Porém, se eu tinha jeito, faltava-me traquejo. Faltava-me o saber feito de engenho e arte. Mas assim eu quereria a minha crônica: com a inocência dessa primeira. De quem não sabe. Com as mãos trêmulas de uma criança desajeitada, mas que se maravilha com seus traços obtusos, porque se maravilha com o mundo.

E como eu me maravilhei, então. Eu tinha mais um motivo para maravilhar-me. Estava nascendo ali um escritor. Medíocre, pretensioso, derrotado, nunca fracassado, não importa, nasceu ali um escritor. Eu era o protótipo do fracasso, o último em tudo, dos esportes aos estudos, passando por todos os serviços que nos davam para fazer, como garçons, faxineiros, coroinhas; eu era o desastrado, o desajeitado, o incapaz de realizar qualquer coisa bem feita. Pois bem. Agora descobrira alguma coisa que sabia fazer melhor do que os outros. Escrever.

Essa crônica foi o primeiro dos textos que me pediram para escrever. Eu nem quis escrever; foi preciso insistirem, que eu faria melhor que ninguém, que todos queriam ler o que eu escreveria. Pena que a Cãibra de Saudades desapareceu para sempre na cratera do tempo. Haveria ali um documento histórico. A primeira crônica. O primeiro texto literário do futuro escritor. Que esse escritor não tenha depois realizado nenhuma obra importante, pouco importa. O que importa é que nasceu o escritor.

Se me perguntam por que escrevo, a resposta é essa. Um cara que fazia tudo errado, falava feio, corria caindo, estudava como um burro, esse cara sabia escrever! Eu descobri que alguma coisa na vida eu fazia melhor do que os outros. Depois, com o passar do tempo, de um aprendizado vagaroso, que nunca se conclui, aprendi que eu era um criador. Eu era capaz de brincar e brigar com as palavras, extraindo vida delas. Ou criando vida com elas. As palavras são como as pedras. O escritor é quem tira leite das pedras. É quem constrói um casebre ou uma catedral com as palavras, que não são estéreis, mas têm leite ou sangue.

E tudo começou com aquela primeira crônica.

A Cabana do Desespero continua em pé. O texto, com o papel em que foi escrito, esboroou-se entre os dejetos do tempo. O seu espírito permanece, dá frutos, as auroras nascem dele, as noites, os cavalos, as crianças, os velhos, o sangue humano nasce dele. Uma mulher amamenta o dia que nasce das minhas palavras, que vêm lá daquela longínqua Cabana do Desespero.