D. Francisca

Recebi uma mensagem na qual está dito que o Papa Francisco propõe para a quaresma a prática de quinze atos de caridade; e o primeiro deles é “sorrir”, por considerar que um cristão é sempre alegre.

Quando a li, imediatamente me lembrei da D. Francisca.

D. Francisca é o que se pode chamar de uma pessoa desafortunada: pobre, preta, iletrada e já com as marcas do tempo.

Ela trabalhou para mim durante alguns anos, como “passadeira”. Minha mulher gostava dela, porque, apesar de lenta, cumpria bem o seu ofício e cobrava um pouco menos do que outras profissionais. Eu a admirava pela sua alegria.

Nunca vi D. Francisca sem um sorriso nos lábios, ou com pensamentos negativos! Não se entristecia nem com “batida de trem em horário de rush”.

Não... não pensem que D. Francisca era (ou é) insensível à tragédia alheia. Ela não o era, tenho certeza! Apenas não permitia que a dor das vítimas a impedisse de rejubilar-se pelos sobreviventes. Em outras palavras: entre a vida e a morte, exaltava a primeira. Nada a abatia!

Certa vez, chegou lá em casa com o olho roxo e alguns hematomas. Indagada sobre o que se passara, contou:

- Um ladrão entrou lá em casa e roubou o bujão de gás e as compras do mês. Aí meu marido ficou bravo, porque eu estava rindo da situação e lhe disse que achava que não tinha trancado a porta direito. Mas não foi nada não. Ele tinha bebido e só me deu um empurrão e eu caí.

Expliquei-lhe, então, que tínhamos meios legais para evitar que aquilo voltasse a acontecer, mas ela me disse, sorrindo, que já tinha passado.

Confesso que, naquele momento, me irritou a sua passividade e só mais tarde, a conhecendo melhor, entenderia que aquela atitude não era passividade, mas um ato de perdão. A concretude do amor.

Em outra ocasião, quando já deixara de trabalhar lá em casa, recebi dela um telefonema e, sem dar-lhe muita trela, fui logo perguntando se precisava de alguma coisa. Sua resposta me deixou envergonhado:

- Não senhor. Não estou precisando de nada, apenas passei aí perto e me lembrei do senhor e quis saber como estava indo.

Ah... D. Francisca, que lição “levei” naquele dia. Até hoje, quando percebo estar agindo com soberba, procuro me corrigir de imediato e peço perdão a Deus.

De outra feita, estávamos passando pelo setor hospitalar, eu e minha esposa, quando ela me perguntou:

- Não é a D. Francisca que vai ali?

Olhei e confirmei:

-Sim, é ela. O que está levando naquele carrinho de mão?

Parei o carro, minha esposa desceu, foi ter com ela e depois me contou:

- É o marido dela. Ela o está trazendo para fazer hemodiálise.

Eu estranhei:

- Num carrinho de mão?

- Sim. Ele não anda mais. Disse que estão morando no Gama, então, duas vezes por semana, põe ele no ônibus, desce na L2, pede emprestado o carrinho de mão numa obra e sobe até aqui (só quem conhece Brasília, avalia a dificuldade). Eu disse que nós daríamos a ela uma cadeira de rodas. Já a mandei passar na loja de material ortopédico enquanto ele faz o procedimento e, de lá, ligar para você.

Assim foi feito: a dona da loja me telefonou e disse que estava encantada com a conversa que estava tendo com a D. Francisca, que nunca conhecera alguém assim, que transpira alegria; que ela havia mudado seu dia e que me venderia a cadeira de rodas pelo preço de custo.

O tempo passou e, cerca de um ou dois anos depois, qual não foi a minha surpresa, quando recebi o telefonema de D. Francisca, dando a notícia de que seu marido havia falecido, me agradecendo pela ajuda com a cadeira de rodas e querendo saber como faria para devolvê-la.

Disse-lhe que a vendesse e ficasse com o dinheiro. A resposta foi pronta e direta:

- Não posso fazer isso. O Sr. fez um bem me dando a cadeira. Tenho que agradecer fazendo o mesmo. Posso dá-la a outra pessoa? Tenho um vizinho que está precisando.

Meus olhos encheram-se de lágrimas! Senti seu sorriso e pensei: tenho muito o que aprender. Como tenho...

Por onde você anda D. Francisca? Apareça! Preciso de suas lições!

O período da quaresma se aproxima. Preciso me preparar: aprender a sorrir com a espontaneidade com que a Sra. o faz; preciso transmitir alegria.

Hegler Horta
Enviado por Hegler Horta em 30/01/2017
Reeditado em 31/01/2017
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