A velhinha e o pintor

Todos os dias a velhinha revirava o lixo da mansão do pintor para escolher o que poderia vender e, assim, não passar fome. Apesar de pouco instruída, era até esperta para vender quinquilharias e não gostava de pedir dinheiro no sinal, nem de bater de porta em porta, pois sabia que a maioria das pessoas, inclusive o pintor, detestava de ser incomodada com pedintes.

Certo vez, o pintor olhou pela janela da suíte buscando inspiração para a próxima tela, e notou a pobre senhora revirando o lixo. Comovido com a cena, não conseguiu pintar nada naquele dia. E ele percebeu que a situação se repetia diariamente. Toda manhã, ao tentar se inspirar, a cena da velhinha lhe tirava o foco.

Perguntou aos seus funcionários se a conheciam, e soube que ela era de poucos amigos, meio arredia. Não adiantava tentar conversar com a senhora, pois, assim como não gostava de incomodar, não queria ser incomodada. Sabiam que já havia sido escorraçada de muitas casas, o que lhe causou aversão às pessoas.

Com o coração apertado, ele resolveu todo dia "jogar fora" um objeto de certo valor, na intenção de que ela pudesse vender por um bom preço.

Um dia, finalmente, ele teve um insight e, aliviado, começou a pintar.

O trabalho durou um mês. Ao final, o artista redigiu o documento de certificação de sua obra. Mas aquela fora sua última tela. Não muito depois disso, o pintor morreu, sem ter tempo de emoldurá-la. O patrimônio ficou sob a guarda da secretaria de cultura, até seus herdeiros receberem o que haviam de direito. Todas as obras da mansão ainda estavam lá. E a velhinha, sem saber da morte do pintor, começou a não ver mais as coisas mais valiosas, jogadas no lixo. Aborrecida, teve de se contentar com o de sempre.

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Um assalto aconteceu na mansão. O ladrão, sem ter como levar tudo o que podia e vendo que a polícia fora acionada, correu na direção da lixeira, jogou a última tela do artista no lixo, na intenção de voltar e recuperar o produto do roubo, e sumiu pela área verde.

A velhinha apareceu logo depois, assustada com o barulho das sirenes, com a movimentação, mas logo se dirigiu à lixeira, tirando o que lhe pareceu um tapete de, talvez, um por dois metros quadrados. Enrolou como pôde o "tapete", entre outras coisas, e foi para casa.

O bandido foi capturado, as peças recuperadas, mas a última tela do pintor ainda estava sumida. O ladrão contou onde havia jogado a tela e os policiais correram em direção à lixeira.

Nada encontrando, procuraram saber dos funcionários e pelas câmeras da mansão se a coleta do lixo já havia passado por ali. As cenas das câmeras mostraram a velhinha recolhendo a tela e outros "lixos". Começaram a procurar onde ela morava e chegaram a sua casa, longe dali. Ainda não havia vendido nenhum dos objetos de valor que o pintor "jogava no lixo", muito menos o "tapete" que, por sinal estava pendurado na parede. Quando lhe explicaram o que havia acontecido, a senhora mostrou o "tapete".

Perguntaram-lhe como conseguira aqueles outros objetos. Como o pintor não havia dado queixa de roubos, acreditaram que a história dela deveria ser verdade, o que foi comprovado posteriormente, ao verem novamente as filmagens da mansão, onde o pintor, infalivelmente, todas as sete horas da manhã, jogava um objeto na lixeira, exatamente meia hora antes da velhinha passar.

Quanto às outras peças, não puderam fazer nada: tecnicamente, aqueles objetos eram "lixo" jogado fora. A tela, porém, teve de ser levada. A velhinha não se importou em entregar seu tapete novo, pois, era honesta.

O leve estrago causado por tanto manuseio estava sendo reparado, e foi aí que se soube o que o artista havia pintado: uma velha senhora catadora de lixo. Os restauradores também se depararam com um texto no verso da obra. Era uma dedicatória, uma dedicação da própria tela à velhinha. O pintor havia deixado escrito atrás do quadro que este seria leiloado em prol da velhinha e de outras senhoras na mesma situação.

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Uma fundação se encarregou do leilão. Profissionais foram a casa da velhinha verificar as outras obras. Todas estavam dedicadas à velhinha, para que não houvesse dúvidas quanto a doação delas à idosa. O empresário do artista encontrou o documento de certificação da tela, onde era-lhe designado orientar a velhinha com aquela obra.

Além do valor arrecadado com o quadro, ela ainda teve assessoria para saber como proceder com os objetos deixados no lixo para ela. A experiência com vendas de quinquilharias ajudou.

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A velhinha nunca mais precisou sair de casa às quatro da manhã para catar lixo.