Estrela guia

Era muito comum nas férias do fim do ano ir visitar nossos avós, na Chapada Tamboril, um interior inabitado, exceto por nossos avós Francisco e Cecília, ambos com seus setenta e poucos anos, e mais alguns raros moradores da região. Sempre era a maior festa, a humilde casinha lotada de filhos e netos, a pick up F75 verde musgo na garagem sempre a disposição dos que sabiam dirigir, para ir pegar lenha na mata, ou água na cacimba. O que mais adoro na vó, fora suas histórias encantadoras e surpreendentes, é a sua comida: ela fazia queijo, doce de leite e bolo. Todos os netos amavam! Vô Francisco, apesar de ser durão e um pouco insensível, sempre foi um homem digno, honesto e muito trabalhador. Acordava às 4h da manhã e ia ordenhar as vacas, obrigando todos os netos homens a fazerem o mesmo, inclusive eu. Claro que não ia, continuava deitado na rede até às 8h. Numa noite em que estávamos todos reunidos na casa de nossos avós, vó Cecilia narrou uma de suas histórias preferidas pelos netos: Bela Munda. Mas, infelizmente, os sinais da idade começavam a se evidenciar. Ela não lembrava mais da história como em outras épocas. Vó Francisco ficava deitado na sua rede, no quarto ao lado, resmungando das risadas altas da criançada.

Foi uma época inesquecível na vida daquelas onze crianças. Os meninos deviam ser, na visão deles, destemidos, valentes, corajosos e as meninas as donas de casa e dos seus respectivos maridos. Era essa a regra e era bem claro. Fugir desses padrões, talvez para um deles, não fosse da linhagem dos Silva. E acredito que fosse somente para o vô, pois a vó amava seus netos incondicionalmente. Os anos iam passando e o desinteresse em frequentar aquele lugar perdido no meio do mundo ia acabando aos poucos. Alguns elementos da modernidade chegaram, como energia elétrica e água encanada. Até celular pegava, com auxilio de uma antena rural, é claro. Internet é uma realidade distante.

Certo dia, já na atualidade, veio uma péssima notícia que estarreceu todos os membros da família: a vó foi diagnosticada com mal de Alzheimer, a doença do esquecimento. Além de não se lembrava de mais nada, nem dos filhos e netos, também caia constantemente e se feria muito em decorrência das quedas. Sua última e mais grave queda aconteceu no início de 2017, o qual a deixou internada por muitos dias em um hospital público de Picos, sob cuidados dos filhos e netos. Mesmo sem ela poder se alimentar, comendo apenas através de uma sonda e respirando com a ajuda de aparelhos, os filhos homens, incluindo meu pai, optaram em levá-la para casa, em um bairro próximo ao centro, para que as filhas cuidassem dela.

Aquela rotina melancólica era extremamente triste para todos. Conviver com o sofrimento diário de uma idosa que teve vários ossos fraturados durante a vida. Ninguém desejava que partisse, naturalmente, mas todos reconheciam o quão ela estava sofrendo. Sem profecias, ela foi nossa grande matriarca, nossa guia. E quando Deus tiver que chama-la, irá com a sensação de dever cumprido, apesar de não presenciar o crescimento físico e profissional dos netos e bisnetos. Cecília ainda está acamada, mas cremos em milagres. Cremos que ela ainda terá muita vitalidade e verá os grandes feitos dos netos e bisnetos. Nossa vozinha certamente representa muito para todo da família. É um exemplo de mulher trabalhadora, corajosa, matriarca de uma família tão complexa e diversificada, mas que soube lidar com cada um da melhor forma possível. Amor não faltou, foi regado no coração de todos em sua volta. Quando Deus tiver que chamá-la para sua divina e eterna companhia, será sempre lembrada como nossa estrela guia.

FIM

Patrick Sousa
Enviado por Patrick Sousa em 06/02/2017
Código do texto: T5904524
Classificação de conteúdo: seguro