A VELHA CALÇA DESBOTADA



Há sempre um poema de Quintana seguindo-me os passos.
E ainda que eu não admita , esta companhia silenciosa,é sem dúvida,uma espécie de solidão .
[Uma solidão andante]
Em que pese todo o esforço que faço para supera-la,a danada sempre vence.
Maas!...É uma solidão que não dói,cai de suave,de mansinho,posto que aproveito para travar um reencontro comigo mesmo.
Os sábados,com seus ares de preguiça e aquêle cheiro de bolo de fim de semana são costumeiramente alcoviteiros.E aí vem à cabeça aquêle antigo comercial de TV:

“Vestir uma calça Lee e sair por aí ...”
Nada a ver com a tal marca que nos anos 70 ,vinda diretamente do Paraguai, nos era vendida à preços exorbitantes,pelos “importadores” e suas sacolas.
Depois de muito bem lavadas e esfregadas com pedras de sapólio,descoradas ao máximo, com as barras desfiadas,combinavam-se à camisas pretas,de um tecido reluzente (modismo da época) e estava-se nos trinques para “sair por aí”.
Não sem antes,é  claro, umas borrifadas de “Lancaster” que ,convenhamos, as gatinhas adoravam.
Êsse rodeio todo,apenas para dizer que aproveitei a tarde de sábado “pra sair por aí”.
Evidentemente que a “Lee” dos anos 70 (superada a coitada!) deu lugar à uma bermudinha básica .
Como a “fase das gatinhas” já não me pertence mais, nada de borrifações.rsrs...
Lembranças?...
Ah!...estas não há como mascara-las e , de repente,estou diante de um certo casarão numa determinada esquina.
Está fechado.
Presumo-lhe desabitado.
Uma frondosa árvore sombreia-lhe duas janelas e parte dos degraus que dão para a varanda.
A imagem sugere-me um palco .
[Um palco vazio]
As personagens dos anos 70 tomaram,uma à uma, rumos diferentes,Assumindo novos papeis no teatro da vida. Entretanto, observando aquêles degraus vazios na tarde ,não me furto à tentação de recriá-los com suas cores primitivas,seus sorrisos,sua músicalidade...
Era de Ria Lee a canção que rolava no vinill daqueles anos dourados (num tempo de radionetes).A voz de falsete da,então recatada, cantora era acompanhada pelo festivo grupo de garotas espalhadas pelos degraus da escada.
Escorria o sol da tarde e a esquina era tomada de um refrão que dizia assim:


”Olha que foi meu bom José//Se apaixonar pela donzela//Dentre todas a mais bela//De toda a sua Galiléia..."

Aí é que entra o poema de Quintana:

“Ah,meus velhos camaradas!
Aonde foram vocês? Onde é que estão
Aquelas nossas ideais noitadas?
Fiquei sozinho...Mas não creio,não,
Estejam nossas almas separadas!
Às vezes sinto aqui,nestas calçadas,
O passo amigo de vocês...E então
Não me constranjo de sentir-me alegre,
De amar a vida assim,por mais que ela nos minta...”



Por que aquela canção na tarde vadia,soava num tom provocativo,algo como o trinar de sabiás na cantilena do acasalamento.
Do outro lado da rua,com nossas velhas calças desbotadas e cheirando à Lancaster, nos sentíamos o próprio José da canção,ainda que fossem aquêles nossos amores ,meramente platônicos.
Timidez , insegurança... Sabotaram algumas de nossas chances e o tempo,implacável, encarregou-se de escrever nossos novos enredos.
Hoje sei de vocês,meus camaradas,velhos sossegados embalando netos em varandas
bagunçadas de brinquedos.
É bem  possível que entre um embalo e outro,um cheiro remoto de bolo de fim de semana desprenda-se da memória olfativa e os faça reviver aquêles “Josés” dos anos 70.
Quanto à mim,sem netos à embalar,não me submeto ao sossego avarandado dos sábados.
Prefiro entregar-me aos ares nostálgicos das ruazinhas de pedras. Ainda que minhas andanças remetam-me à uma certa solidão e algumas saudades entre uma passada e outra.

Joel Gomes Teixeira



Clic  no link  abaixo  para  ouvir a  doçura  de  Rita nos  anos  70:
https://www.youtube.com/watch?v=I3-7QZwZN5A


Texto  reeditado.
Preservando os comentários  na  edição  anterior:


Comentários
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11/07/2015 22:34 - Rosangela Martins
Lendo essa crônica e ouvindo Rita cantar Meu Bom José, permito-me ser feliz e agradecer por estar aqui em sua escrivaninha. Muito obrigada Meu Bom e Nostálgico Amigo.
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11/07/2015 14:29 - Norma Aparecida Silveira Moraes
MARAVILHOSA CRÔNICA. ADOREI RELER OS VERSOS DE QUINTANA, APLAUSOS MIL. PAZ E LUZ
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11/07/2015 14:27 - Iratiense THUTO TEIXEIRA
Dartagnam,o comercial realmente existiu e certamente era inspirado na canção que você mencionou em seu comentário.Fazia (o comercial),o maior sucesso na época e como sempre,éramos levados na onda de usar a dita calça,preferencialmente com os retoques que lhes dávamos.Um abraço.
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11/07/2015 14:22 - Dartagnan Ferraz
Iratiense, concordo com você, seu textoé ótimo. Mas o comercial da calça lee, se existiu, é uma fila de um samba famoso que era cantado por varios cantores, inclusive pela saudosa Nara Leão, chamado "Mamiosa Listrada", "Vestiu uma camisa listrada e saiu opor aí...". No mais, bom fim de semana. E priu.


12/12/2011 04:14 - Chico Chicão
Meu caro Joel amigo do meu Paraná querido.Senti o perfume do Lancaster e o sucesso com as mocoilas em tempos idos.Calca Lee e botas meio cano.E sem netos para adocar.Tempos idos,tempos vadios e belos.E como diz Pessoa-*Tão isolado na vida!Tão deprimido nas sensacões!* É...Quintana,Pessoa,Rosas,Drummond,Vinicius e tantos outros que venham em nosso auxílio.Seremos gratos pela visita.Querido Joel.Mate-nos de saudades gostosas e prazeirosas ao ler seus textos.Fico feliz.Obrigado.Fique na paz!
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11/06/2011 13:04 - CLAUDIONOR PINHEIRO
Brilhante sua crônica Joel uma bela maneira de homenagear nossas lembranças dos dourados anos 70. O perfume,a calça Lee as músicas do nosso tempo. Aí então, sua bucólica ruazinha calçada de pedras, lembra-me muito a nossa rua Santana, também cantada em prosa e verso pela doce amiga Celina Figueiredo. Saudações amigo poeta.

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17/01/2011 15:09 - Ricardo Mascarenhas
Grande Joel! Rapaz adorei sua crônica. Lí num gole só, numa olhada profunda, o que me revelou uma portinha no passado presente. Adorei realmente, inclusive a forma espontânea de sua escrita. Parabéns meu caro poeta. Um grande abraço e uma tarde iluminada pra vc.
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16/01/2011 19:58 - Edilson Souza (Malgaxe)
Ruazinhas de pedra, com eternos muros altos de um chapisco antigo, parece uma viagem no tempo e que ali na frente abre-se na realidade e em se tratando de irati, abre-se em mais e mais testemunhas da suas passagens, saudades bem descritas em seus textos. Olha eu lembro da boca de sino, sei terem existido, mas calças desbotadas não usei, usei sim lee mas aquela brim coringa azul escuro, lembra? Bom mas olha só pra contribuir com a sua crônica com a sua devida licença, a musica a que se refere me parece que ficou na preferencia do publico chamar Meu bom josé ou José, mas quem compôs esta canção foi Georges Moustaki um egipcio, e chamou a canção, Joseph, e que Nara Leão, trouxe a versão que conhecemos para a lingua portuguesa com o nome de José, e que alguns cantores gravaram, entre eles Rita Lee e Padre Zezinho. Obrigado pela oportunidade de lhe ser útil. Grande abraço.
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16/01/2011 14:59 - Lisyt
Como são belas suas lembranças! Lembranças que Você transforma em poesia nostálgica, repleta de colorido e encanto. Sou levada a refletir: Que bom ter vivido essa época! Receba meu abraço fraterno.
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16/01/2011 14:23 - Anita D Cambuim
Ele usando Lancaster e ela, Madeiras do Oriente. Ele de calças lee desbotadas e ela de vestido tubinho, óculos gatinho...rs. Muito legal a sua associação da varanda com um palco. Ótima crônica. Boa semana, Joel.
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16/01/2011 13:59 - meriam lazaro
Fiquei aqui com olhos rasos de nostalgia e contentamento ao ler reminiscências queridas, que fazem parte da história de tantos. Afetuoso abraço e uma semana abençoada para você,_____Meriam
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16/01/2011 11:48 - CONCEIÇÃO GOMES
A minha, eu abri dos lados e fiz uma pantalona...O Lancaster para nós era Toque de Amor da Avon. E a musica, era sim a Rita que cantava. Impossivel não sentir saudade nostálgica daquele tempo. Faz parte da nosa história
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13/01/2011 18:18 - RobertoRego
Joel, o amigo é mestre em crônicas nostálgicas, evocando reminiscências dos nossos verdes anos! Lindo texto, poeta das araucárias. Tenho duas irmãs que trabalharam durante anos indo e vindo ao Paraguai, comprando lá e vendendo aqui, faturando seu dinheirinho. Eu as chamava de "executivas de fronteira" (rsrsrs), bem melhor do que "sacoleiras", né? E calça "Lee" constava de quase todas as encomendas. Sempre bom viajarmos com você ao passado, Joel! Meu aplauso, meu abraço forte, paz e alegria! 
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09/01/2011 22:40 - Maria Olimpia Alves de Melo
Ganhei uma calça Lee de minha mãe, vinda direto do Paraguai. Era um luxo só. Ler voc~e é sempre fazer também uma visita ao meu passado.
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09/01/2011 20:36 - Leonilsson
"Olha o que foi meu bom José Se apaixonar pela donzela Entre todas a mais bela De toda a sua galileía Casar com Deborah ou com Sarah Meu bom José você podia E nada disso acontecia Mas você foi amar Maria Você podia simplesmente Ser carpinteiro e trabalhar Sem nunca ter que se exilar De se esconder com Maria Meu bom José você podia Ter muitos filhos com Maria E teu oficio ensinar Como teu pai sempre fazia Porque será meu bom José Que esse seu pobre filho um dia Andou com estranhas ideias Que fizeram chorar Maria Me lembro as vezes de você Meu bom José meu pobre amigo Que desta vida só queria Ser feliz com sua Maria" A cantora era mesmo a Rita Lee e às vezes a Nara Leão, autora da versão. Amigo, só faltou dizer das camisas de gola rolê para combinar com a calça desbotada. Vir aqui é sempre um prazer. Grande Abraço.Leo
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09/01/2011 17:43 - Lenapena
Que delicia de texto. Com emoção me aventurei para dentro dele, e revi a calça desbotada, ouvi a Rita Lee a cantar, "Por que será meu bom José se apaixonar pela donzela, que dentre todas a mais bela, de toda sua Galileia." E o cheiro do bolo de final de semana, haaaaaa delicia completa. O que seria de nós, se não houvessem lembranças para lembrar, e saudades para sentir ??? Você tem a magia de voltar pelos caminhos já idos, com beleza e poesia.
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09/01/2011 17:37 - Rejane Chica
Maravilhosa tua crônica e certamente eles também tem essas recordações e saudades...abração,chica