Amar como se deve

Não passava das cinco da manhã. O sol, preguiçoso, formava uma linha única no horizonte, banhando com riscos de dourado, laranja e vermelho, toda uma selva de pedra com a qual o par de olhos igualmente fugazes ainda tentava se acostumar. Ela gostava de acordar cedo, observar o mundo despertar segundo a segundo enquanto o abismo fechava abaixo dos pés chatos que tanto odiava.

Aquela calmaria matutina era o único pedacinho de sua terra natal que conseguia encontrar na grande capital, além dele, é claro. Aliás, mais uma vez, a noite em claro materializava-se nas olheiras profundas da garota. Ou devia dizer mulher? Bom, essa ainda era a pergunta que tentava responder a si mesma. De qualquer forma, não importava, a culpa seria dele.

Brigaram e como brigaram. O cartão atrasou porque ela não sabia aonde tinha enfiado o boleto, o gato fugiu porque ele esqueceu a porta aberta, o encanador não tinha ido ao andar deles de novo para ver o problema da água quente e tudo porque ela não deixou o pedido na portaria. Ela queria ter um filho, ele tinha medo de ser pai tão cedo. E depois se amaram. Um sentimento tão grande e profundo que parecia pequeno para as paredes fracas do apartamento de apenas três cômodos. Todavia, não sufocava, não emergia, permanecia fluindo como o vento, perdido nas curvas dela, no sorriso dele.

- Acordada a essa hora?

No susto, o corpinho quase despencou pelo janelão da sala. Ainda com a expressão amassada e linhas do travesseiro atravessando o rosto e o peito, ele estava ali, parado a olhar para ela, o braço apoiado acima da cabeça, na coluna que dividia cozinha e balcão do sofá e do resto, uma caneca de café quente na outra e o mesmo sorriso de moleque que a encantava em todas as vezes.

- Acho que não dormi.

Sorrindo, virou-se para ele, os cotovelos encaixados no peitoril de mármore. Era assim que sabia que o encantava: Apenas uma camisa de flanela abotoada de forma errada e qualquer roupa íntima que fosse fácil de tirar.

- Minha intenção era te cansar e não te entediar até a morte a ponto de tirar seu sono.

- Ainda dá tempo.

- Mas eu tenho que trabalhar.

- Como se você precisasse de mais do que dez minutos.

Absolutamente desafiado, ele balançou a cabeça de um lado a outro, mantendo aquele rasgo nos lábios que indicavam perigo, bem puxado para a direita. Nessas horas, se lembrava do passado e de todas as coisas ditas e não ditas, viajou nas pernas que se esbarravam uma na outra, nas mechas escuras caindo sobre o tecido ralo de sua própria camisa velha, na renda que escapava entre os botões e suspirou:

- Acho que meu chefe não vai ligar se eu me atrasar por meia ou uma hora...

Ladra de Tinta Seca
Enviado por Ladra de Tinta Seca em 11/03/2017
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