Socorro, roubaram nossas crianças!!!

Há algum pouco tempo, publiquei aqui mesmo e repliquei em tantos outros sites uma crônica em que prestei uma singela homenagem a Nair, a Rainha dos Destrambelhados que pululavam por nossas plagas e que por tantos anos preencheu nossas tardes e noites com suas tiradas bem humoradas (ou não quando se sentia ultrajada, principalmente ao repetirmos a frase que a identificava – “Essa terra não tem homem!!!” e que ela usava como se um bordão), alardeando que estávamos sendo despojados de nossos melhores loucos, levados para terras distantes e ignotas, restando-nos, hoje, somente o Miguel, que somente fica bravo quando o chamam de Paola, o que é deveras preocupante. Perdemos inteiramente nossa identidade, o que não podemos permitir.

Ontem à tarde, estava meio taciturno talvez por não ter muito como ocupar o tempo, o qual passa meio vagarosamente nessas ocasiões e fui ao centro da cidade para me recompor; – conclusão, voltei mais deprimido ainda, ao constatar a inexistência de crianças nas ruas de nossa cidade, outrora tão pululantes como se pardais e que surgiam em bandos, ora para pedirem a contribuição dos mais velhos ou lhes venderem rifas para comprarem jogos de camisas e bolas para seus times de futebol na selaria de Seu Veriano, ou ainda se dirigindo para algum canto onde pudessem soltar suas pipas, “toiarem” suas bolas de gude, jogarem seus piões e armarem as traquinagens típicas de crianças irresponsáveis e felizes.

O silencio dessas multidões de fantasmas hoje inexistentes, levados por seus pais para outras cidades a pretexto de lhes darem melhores condições de educação e de vida, embora, tem-se que convir, tenha gerado uma geração – a nossa – que se realizou profissionalmente nos mais diversos campos em que atuou, despontando como renomados médicos, economistas, advogados, bancários, industriais, eméritos contabilistas que sabem até tirar o líquido do bruto sem dar balanço como esses grandes amigos Nen e Luiz Carlos Del`Espost, em contrapartida criou toda uma geração infeliz que não soube extrair do muito conhecimento e vivência que lhes foi provido para transmitir a seus próprios filhos e netos a essência dessa lição, deixada abandonada em um canto qualquer de rua de nossa abandonada cidade e que hoje se emociona ao constatar que “era feliz e não sabia”.

Dentro do propósito inerente a todos os pais, de propiciar aos filhos toda a felicidade que o mundo possa lhes prover, além de os resguardamos dos perigos, falhamos redondamente. Ao invés de lhes ensinarmos as regras e técnicas do jogo de bola de gude, do pião, ensinamos-lhes a se fixarem como robôs diante das telas de Atari e Nintendo ou a ficarem olhando patéticos para as telas de um celular; ao invés de lhes ensinarmos a construírem seus próprios carrinhos motorizados por elásticos ou puxados por barbantes, demos-lhes carrinhos de plástico com controle remoto; ao invés de os ensinarmos a dirigirem um carro de rolimã ladeira abaixo e em que os freios seriam as solas de nossos Vulcabras, demos-lhes carros equipados com motores de centenas de cavalos-força e, o pior, com um burro ao volante ouvindo funk; não lhes ensinamos a beber água diretamente da torneira ou de uma fonte nas conchas das mãos ou em folhas de pindoba; não lhes ensinamos a delícias de tomarem um banho de rio na Pedrinha, não lhes ensinamos que as frutas mais saborosas são as “roubadas” dos quintais do vizinho e colhidas no pé e o principal, não lhes ensinamos a amar esse recanto em que vivemos os melhores anos de nossas vidas.

E talvez por uma formação cartesiana e visceralmente ligado às expressões numéricas e em que tudo é exposto para melhor compreensão em planilhas Excel, de repente, vislumbrei uma realidade que deveras me assustou: ESTÃO SEQÜESTRANDO NOSSAS CRIANÇAS!!! assim mesmo, com trema, já que sou contrário à exclusão desse sinal gráfico de nossa grafia, talvez por não compactuar com modernidades, preferindo continuar vivendo em outro tempo, quando éramos felizes e registrava minhas divagações em folhas de papel almaço e com caneta tinteiro.

A propósito, nem mesmo lhes ensinamos o que é uma caneta tinteiro. Há dias, tendo recebido de presente uma dessas preciosidades, uma autêntica Parker 51 preservada por minha querida irmã Lucinha, fui a Vitória e procurei em suas papelarias por um vidro de tinta, que não existia aqui em Mimoso. Com o maior orgulho e sentindo-me até mesmo importante, pedi à atendente um vidro de tinta Parker Quink Azul Real Lavável. Ela me olhou com cara de incredulidade, pois não sabia do que se tratava e após consultar inúmeras outras, trouxe-me um de tinta nankin, o que recusei, bem como a outros de tinta guache. Tentei explicar-lhe a que queria, que era destinada a uma caneta tinteiro, daquelas para se encher acionando a bombinha nela inserida, o que ela não conseguia entender, alegando que somente tinham canetas esferográficas, porém não a tinta para elas. Sai frustrado e cabisbaixo, ao ver que eram coisas de um tempo que passou e talvez somente a encontre em algum museu que a tenha preservado.

E como me calar, denunciando a todos e no aguardo que o prefeito Giló veja isso e tome providências, que encaminhe o pleito ao Sr. Delegado para que apure devidamente e trancafie os meliantes responsáveis em nossa própria cadeia por um bom tempo, não os enviando para Cachoeiro já que nossas prisões foram desativadas, ao constatar que somente na Rua do Quartel, atual Presidente Vargas, desapareceram mais de cem crianças, senão vejamos:

A rua, que também se chamou Paraíba sei lá por que, logo na primeira das casas na confluência com a praça, tinha duas de nossas crianças contemporâneas, todas elas hoje na faixa dos sessenta a setenta anos, a Marlene e a Lúcia, filhas de Antonio Velasque e D. Zulmira; depois, no mesmo lado e passado o Cine São José, Carlinhos, Carminha, Cláudio, Celso e Cléber, filhos de Perligeiro e Iracema. Subindo a Ladeira da Igualdade que com seu sugestivo nome nos conduz ao cemitério, tínhamos a casa do Milton Gamboa e Mariinha e sua bela prole constituida por Vera que hoje desponta como laureada escritora com o sobrenome Moll, por seu irmão Gamboinha que adorava trocar tapas com Artur e as belíssimas Sonia e Idalina que tanto nos encantam. Em seguida tínhamos a casa do Ciro Pitanga, que nos presenteou com Auxiliadora, Maria Aline e José Alfredo, levado precocemente em um acidente de automóvel; defronte, Gustavo e duas irmãs que apesar de lindas não recordo os nomes, filhos de Andrade, gerente do Banco do Brasil, casa essa depois ocupada por Moreno e Nair, com Marcos, Marcelo, Marta e Káthia; ao lado, na casa do Dr. Cisne, Turene e Jussara e por muitas vezes ainda acompanhadas de Maria Eunice, Maria Helena e Nicodemus, além de Adolfo, seu primo, que com eles residiu por muitos anos.

Logo em seguida, a casa de Weston Moreira e Wanda, com mais três, Nilo, Vanira e Eliane, vizinhas à casa de Vovô Daminhas e Vovó Ambrozina em que não havia crianças, salvo quando visitados por Nelson Mota com seus filhos Luiz Carlos Butetê, a bela Nara, Paulinho e Nelsinho que participavam da farra; defronte, a casa de Zé do Correio e Nair com mais quatro, Adilza, que mais tarde passou a se chamar Raira, Maricele, Marluce e Marici; na próxima casa, a de William Cheibub e Lenira, somente uma, a Eubéa, seguida pela casa do Reno, nosso eminente e saudoso seresteiro, com José Joaquim, Maria da Penha e a bela e louríssima Carminha, que mais parecia uma princesinha com seus cabelos encaracolados; em seguida, Paulo Afonso e Amabilia, que nos presenteou com a doce e meiga Quiqui, ladeados por Seu José, pai de Isabel e Leda, seguidos por Ciro Nogueira e Teresa, com Zezé, Rogério e Regina; defronte Primo Neto e Zoraïde, com seus seis filhos, Lucinha, Henriquinho – este que ora rememora e relata –, Denise, Beatriz, Ricardo e Gueiza, ladeados por Maneco e Lúcia, com Teresa, Sérgio, Angela e Manoel; em seguida, Seu Zezinho Dentista, com um literalmente time de futebol, do qual somente computaremos sete, Neuza, Domingos, Rosa, Rogério, Clotilde, Sueli e Marcinha, defronte à casa de seu Lauro, pai de Marcelo e seus dois outros irmãos.

Na rua transversal, Claudete, filha de Ernesto e Mulatinha, bem como Carlos Magno, ............., Gracinha e Neto, netos da irmã de Mulatinha, seguidos pelos filhos de João de Deus e Syomara, todos com seus nomes extraídos de livros de literatura e por excentricidade de Dr. Cysne, Pinard, Laineque, Tercio, Eumenes, Astrid e uma outra e finalmente os dois filhos da saudosa Dona Filhinha, Chico e Nando, esse grande amigo, além dos filhos de seu irmão Bolão, Rogério e Ronaldo. Na rua transversal, Bete, Gugu e Maria Luiza, filhos de Luiz de Freitas, ladeados por Tolinha e Maria Julia, filhos de Julio Mainenti e Tutinha; defronte, na casa de Bepe e Mindoca, Adilza e Roberto.

Retornando à rua Paraiba, justamente onde interrompemos, Sérgio e Cláudio, filhos de Jamilu e Penha, bem como Gama, primo que com eles morava; ao lado, na casa de Paulo e Glória Poldi, Paulinho, Marquinho e ............. e, defronte, a casa de Dona Futina, com as três balinhas de mel, Zunara, Zaira e Biel, filhos de Jorge Gabriel, ladeando Antonio José, Malu e Maria José , filhos de D. Francine ; da casa de Duduca e Geza, Roseane, Heron e Hervé, ao lado da casa de Dona Leonor, nossa mais respeitável poetisa, com Omar e Toninho, logo seguidos pelos cinco filhos computáveis de Seu Zé Lagartixa, Irezê, Paulo, Júlio e alguns outros de que não recordo os nomes, chegando ao campo do Ypiranga, restando somente incluir Toninho e Leda, filhos de Antonio Brochado, além de Ângela Massaroni, que nos encantou com sua jovialidade, mas que pouco participavam de nossas brincadeiras.

Como se observa, sem muito esforço e somente no trecho compreendido entre o Bar Guarany e o Ginásio, que hoje não mais tem o curso de formação das belíssimas professoras, tínhamos mais de cem crianças, hoje resumidas a nem mesmo meia dúzia, somente as filhas de Gil e Maricele, a de Maria José Brochado, Giovanni e Sara, filhos de Luciano e Judite e a encantadora Maria, filha de Leandro, neto de Zé Lagartixa, o que explica o silêncio que se vê atualmente, possivelmente abduzidas por algum disco voador.

De madrugada, quando somente os fantasmas perambulam pelas nossas ruas e protegido pela imagem do Cristo Redentor, retornei à Rua Paraíiba, atualmente Presidente Vargas com o propósito de reencontrá-los jogando barrabol, pulando corda, jogando carniça ou bota, julgando encontrá-la novamente nua, sem calçamento, sendo interrompidos somente pela passagem do táxi de Benedito Baco Baco em velocidade e levantando poeira, mas talvez por conta da hora eles ali já não mais se encontravam, certamente porque seus pais já os haviam chamado para casa para dormirem. Desolado, defronte à velha casa onde residi por tantos anos, sentei-me no meio fio e chorei...
LHMignone
Enviado por LHMignone em 09/04/2017
Reeditado em 14/01/2020
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