Vida de Cachorro

Ouvi de meu pai, que ouviu de meu avô, que a vida não estava fácil pra ninguém. É fato que meus netos já ouviram de meus filhos, que ouviram de mim a mesma verdade ou lengalenga. A vida não está sopa! Na contramão dos acontecimentos, eu muitas vezes repeti aos meus filhos a frase que meus avós repetiram pra meus pais e estes repetiram pra mim: Ah... Nos meus tempos! Nos meus tempos se amarrava cachorro com linguiça! A gente criava jegue com pão de ló! Diante desse imbróglio de desencontrados relatos, não é sopa fundamentar um juízo de alguma razoabilidade. Que não está fácil é fato. Estamos levando uma vida de cachorro, para sobreviver tem gente tomando sabugo de milho da boca de vaca no lixo da feira. Já tive que vender a churrasqueira para comprar a carne. Somos abrigados a economizar água, energia, gás e até o ar que respiramos. Como já dissera um ex-craque do América do Rio, estamos latindo no quintal para economizar o cachorro!

Opa! Vida de cachorro? De qual cachorro? Temos dois cachorros (não gosto de chama-los de cães). O meu tem nome de poeta: Shakespeare (SRD), grande, branco. O outro, que é de minha filha tem nome de cantor de rock: Elvis Presley (Yorkshire terrier). Quem cria cachorro como bicho de estimação, sabe a trabalheira que isso representa os cuidados inerentes e os perigos naturais. Criar animais e casamento não é pra quem quer e sim para quem pode. Agora juntando os dois casos, casamento e animais são para pessoas poderosíssimas ou para irresponsáveis. Somando-se apenas os cuidados básicos, como tosas, banhos, vacinas, veterinários e rações, tudo isso emagrece nosso já esquelético e sarnento salário. Até para nascer como cachorro o bicho precisa de sorte. Nascer cachorro e cachorro da casa de pobre, convenhamos, é dose pra “leaofante.” Caçar uma lagartixa para dois, não é brincadeira. Como se tudo isso fosse pouco, ainda temos que nos preocupar com a Associação Protetora dos Animais, que é uma espécie de Conselho Tutelar e com o aspecto moral da coisa.

Um dia desses, sai pra comprar ração e ao adentrar numa dessas casas especializadas, uma moça bonita, com seu marketing facial, me apresentou uma ração que custava a bagatela de R$ 39,00 o quilograma e mais R$ 40,00 numa escova para escovar os pelos do cão. Foi como se me desse uma facada debaixo da costela mindim! Perdi o fôlego e as palavras para me comunicar com a vendedora. Respirei fundo e taquei “um muito obrigado” e sai correndo.

Retornemos o aspecto moral da coisa. Meu cachorro até merece um esforço desses, eu é que não tenho ficha para entrar nesse jogo, mas se eu compro um quilo de ração canina por R$ 39,00 com que cara eu poderei negar um pão a um mendigo que bata a minha porta? Fico constrangido ao passar por uma boutique para cães e gatos, mesmo assim, outro dia entrei numa para me decepcionar mais ainda. Colares, óculos, pijamas, camisas de clubes de futebol, chapéus, fantasias, perfumes, gravatas, carrinho de bebê, guias, coleiras, camas, joias... Tinha muito de tudo, uma parafernália sem fim e se tinha para vender é porque tinha quem comprasse. Uma grotesca afronta à dignidade humana. A minha formação ética não me permite tratar um ser humano, mesmo que eu não o conheça, de maneira inferior a um cachorro. Milhares e milhares de seres humanos espalhados pelos mais diferentes recantos do mundo, gostariam de ser tratados como muitos cães. Nossos programas televisivos, não raros nos apresentam fatos assim, onde cachorros são tratados com o mesmo mimo dispensado aos primogênitos das famílias reais europeias. As novelas televisivas nos apresentam exemplos diários dessas ignomínias, como se fossem a coisa mais racional e digna de aprovação. Um Ministro dessa República usou um carro público pra levar seu cão ao veterinário e quando abordado por um repórter, ainda cometeu o desvario de dizer que “o cachorro também era humano.” Peço desculpas pelo trocadilho infeliz, mas têm cães tratados como humanos e humanos como cachorros.

Um Piauiense Armengador de Versos
Enviado por Um Piauiense Armengador de Versos em 11/04/2017
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