PERDIDOS NA NOITE

"Tomei umas cervejas. Estou pronto

para escrever besteira".

(Charles Buskowski - guru dos anos 60).

Nosso colega de recanto, Chico Chicão, bom quixote, no dia dos namorados escreveu uma crônica com o título de "Um dia morno de veranico invernal".

Sei que nós humanos nos comunicamos por palavras, sons e/ou símbolos (letras, etc), que nos remetem à subconsciência das vivenciadas imagens, impressões, sensações, etc.

Ou seja, ao que já se tornam símbolos semióticos.

Não compreendo bem; mas sei que é por ai...

Pois bem...

Enquanto lia o texto fui remetido ao passado, quando com dezenove anos fui para São Paulo, dar um sentido à vida.

E a sensação era a de que o Chico estava escrevendo da janela do Edifício Copan, arredores da Avenida Paulista e Praça da República, onde aos domingos havia exposição de quadros e ao anoitecer expunha-se a miséria humana.

Era final dos anos sessenta.

Era o fim da época de "Aquarius"; "Hair"; "Morte e Vida Severínia"; "Cleo e Daniel" e tudo mais...

Ainda se usava calça "boca-de-sino" e "anel brucutú".

Nossa juventude pairava em suspenso, sentindo a direção do vento, para saber que rumo seguir.

Então fomos assistir numa noite em que a Avenida Paulista ampliava o sentido de solidão, ao filme "Perdidos na noite", (Midnight Cowboy" ou "Cowboy da meia-noite"), filme do gênero drama, dirigido por John Schlesinger, roteiro de James C. Herlihy; e música tema composta por Fred Neil ("Everybody's talkins").

Ou "TalkinMORTE"..., como se dizia no meu grupo.

Essa música foi o bicho-de-sete cabeças aplicada a uma fotografia cinematográfica que realçava o "vazio" da vida, a solidão ao redor de muita gente.

Eu, bicho do Baguaçu, que buscava se socializar com todo mundo, essa "solidão" era o diabo!

O filme conta a história de Joe Buck, (Jonh Voit), um simplório jovem texano que decide abandonar seu passado e sua cidade mudando-se para Nova York, onde tentará ganhar a vida como "garoto de programa".

Sua excessiva ingenuidade o impedirá de ganhar dinheiro com a prostituição.

Perdido na noite, Buck encontra-se com Rizzo, ou Ratzo, (Dustin Hoffman), um mendigo aleijado que sobrevive de pequenos furtos e com quem terá um forte laço de amizade.

É um filme de "amor" entre homens.

Não o amor sexual; mas sim o amor por afinidade humana.

O filme é depressivo; a música tema - muito conhecida, é muito mais: fossa, é quando a gente, ainda jovem, interpreta o mundo que nos rodeia e o desejo é se meter numa latrina, profunda, e não sair jamais.

Muitos críticos ainda afirmam que o filme tem a melhor trilha sonora de todos os tempos.

Depois do filme fomos a uma reunião.

Naquele tempo havia muitas reuniões.

Participei de inúmeras da "Opus Dei" (TFP), levado pelos meus amigos Nicolau (esse eu posso citar o nome, porque hoje ele está internado num hospício - louco de pedra), M, S, Y, etc. O bom da reunião era o "lanche" que nos aguardava na porta - farto e variado, coisa muito importante para mim, que vivia de estomago vazio.

E participava de grupo de esquerda,(JEC, JOC, etc), onde discutíamos isso e aquilo, e no final de uma reunião de duas horas, nem tínhamos conseguido entrar em consenso sobre o tema à discutir.

O lanche era fraco - ou melhor; nenhum.

Depois de ver Dustin Hoffman - Ratzo no filme, fomos eu e o Nelsinho, um amigo de Araraquara, gente boa, com quem eu morava numa república perto do Ipiranga, participar dessa reunião.

Finda a reunião saímos os dois lá pelas dez/onze horas da noite; hora de voltar para casa.

Estávamos com fome e com vontade de fumar.

Juntamos o dinheiro que tínhamos e contamos: juntos dava para a gente voltar de táxi; ou ônibus - se a gente tivesse paciência para esperar o imprevisível transporte do "Viraepisa" (linha São Caetano/Centro)

Confabulamos e escolhemos comer esfirras, beber café e comprar cigarros.

E voltar a pé para casa.

Na lanchonete Nelsinho, (sempre boa praça e gentil), gritou com o garçom que ao colocar café na sua xícara derramou no balcão.

Deixa prá lá Nelsinho, pouco para se aborrecer.

Estomago cheio, cigarro aceso, fomos ao mictório, (putz... mictório), antes de encarar uma caminhada de cinco quilômetros noite a dentro.

Ao sair do banheiro esperava na porta o garçom, com uma faca imensa, descascando uma batata.

Eu na frente e Nelsinho atrás.

Ele olhou apenas para o Nelsinho e disse:

"Não gostei que você gritou comigo."

A faca, imensa, gelou minha espinha.

Eu me adiantei e disse em voz mais carinhosa que consegui encontrar:

"Desculpe, ele estava nervoso, não teve intensão".

Nelsinho reforçou:

"É desculpe; sinto muito; eu estava nervoso à toa".

Eu disse:

"Estamos saindo de uma reunião onde nada deu certo; ele estava nervoso por isso; desculpe."

"Reunião" - perguntou o garçom da faca.

Respondi:

"Sim reunião contra esse filho da puta de governo militar."

O garçom girou a batata no fio da faca, para mostrar que estava muito afiada e respondeu:

"Então tá companheiro. Aceito as desculpas."

Nelsinho passou ressabiado entre o garçom e a parede do corredor, sem nenhuma confiança, apenas com o desejo de correr longe dali.

Fui atrás e saímos na noite de São Paulo.

O vento gelado, o mesmo frio que é a tônica do filme,

como faca afiada, nos alertou que a vida é breve.

Que o medo habita o coração de todo homem.

Perdidos na noite, disse ao Araraquarense:

"Essa foi por pouco..."

Obrigado pela leitura.

Ata-SP, abril/2015 mais 2.

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UMA EXPLICAÇÃO - No tempo da minha juventude discutíamos muito política, talvez como hoje, embora fossem todos mais educados.

Mas nunca compreendi política.

Platão, acho, criou a seguinte imagem da política: "são pessoas que discutem debaixo de um temporal, não chegam a nenhum consenso e não procuram um abrigo. Todos se molham."

Política é ação humana, com regras humanas; portanto difusas, multifacetadas, e se presta para que os homens aparem as arestas, se aperfeiçoem moralmente.

Para mim muito mais importante é a economia.

Que é uma ciência quase exata, com regras imutáveis, (lei da oferta e procura, lei do pleno emprego, etc), e se bem administrada entrega o bem estar ao homem, a satisfação, confiança, etc.

Parece muito, mas é pouco: a maioria das pessoas quer um trabalho, uma renda, um lugar para morar, algumas roupas para vestir, comer com regularidade e formar família.

A deteriorização da economia, hoje, é a principal responsável pelo desaparecimento das virtudes.

Se não acredita em mim leia "A corrosão do caráter", tese econômica de Richard Sennett, professor de história e sociologia na London School of Economics e coordenador da Unesco na área de planejamento urbano.

Pode ser encontrada em qualquer livraria ou banca de jornal, (livro de bolso), e custa uma merreca.

Fiquem com Deus.