Jeová

Eram 5:30 da matina e o apartamento continuava um caos completo, devia fazer mais de uma semana que ninguém passava uma vassoura por ali. A brisa se esvaia por entre as frestas das persianas e a poeira se espalhava com a rajada artificial do ventilador. “E ele?” — Alguém pergunta. Ele continuava ali, deitado ao sofá, vestindo apenas seu velho pijama, sem esperar nenhuma visita.

Subitamente, alguém toca a campainha. O som desagradável invade bruscamente seus ouvidos e desperta seu coração preguiçoso, quase o fazendo escapar do peito. Recupera a consciência e se sente flutuando nas nuvens. Seus olhos,pesados, não consegue controlar e sua boca parece se mover sozinha, formulando frases desconexas.

“Quem será esse pentelho que está me incomodando a essa hora da manhã?” — Pensa, enquanto se esforça para ficar de pé.

Sente-se completamente indisposto e sua única aspiração neste momento é voltar a época em que os primatas caminhavam sob quatro patas. Tenta, insistentemente, arrumar o cabelo, mas o gigante redemoinho o impede. Caminha lento, como quem está em pleno corredor da morte.

Nas ultimas, consegue agarrar desesperadamente a maçaneta. A acaricia, como mãe fazendo cafuné em filho. Franze a testa e faz uma força supra humana pra abrir. Ele tenta girá-la de todas as formas, mas suas mãos estão dormentes. A campainha toca novamente e…ele consegue!

— O que é que o senhor quer?

— Olá, Jean! Como tem andado esse coração?

— Estou ótimo… — Ele boceja.

— Que é isso, cara? Até parece que não está me reconhecendo!

— Estou sim! Você não é o Ezequias, filho da Dona Marroca, do 49?

— Acertou! Há quanto tempo não nos vemos? 12 anos?

— Por aí. Mas você está bem mudado, Hein?

— E isso é bom?

— Sei lá! O que é isso aí, embaixo do seu braço?

— Ah! É uma bíblia.

— Desculpe. Não estou entendendo…

— Bati em todas as portas, mas você foi o único que me atendeu.

— Claro! Olha a hora, cara! Deve estar todo mundo dormindo!

— A palavra de Deus não pode ser deixada para depois! E então? Posso entrar?

— Espere. Deixe eu ver se entendi bem, você agora é testemunha de Jeová?

— Isso! Mas é uma longa história!

O pobre moribundo não estava com nenhuma vontade de ouvi-la. Só queria mesmo era cavar um buraco, metamorfosear-se numa toupeira e meter-se com tudo dentro. Ou, como é mais provável, simplesmente fechar a porta na cara do religioso e voltar a dormir, mas isso o bom-senso não lhe deixava fazer.

— Olhe. Não repare na bagunça! Pode se sentar aí.

— Imagina! Não sou de reparar em… o que esse cobertor está fazendo no sofá?

— Estava sem sono, vim ver TV e acabei dormindo aí mesmo.

— Bom… vamos começar…

— Começar o que?

— As perguntas.

— Ok.

— Você já teve oportunidade de ler a Bíblia?

— Já.

— Muito bem! Vou abrir em Isaías 26:19: “Os teus mortos viverão, os seus corpos ressuscitarão; despertai e exultai, vós que habitais no pó; porque o teu orvalho é orvalho de luz, e sobre a terra das sombras fá-lo-ás cair.”

— Bonito.

— Você entendeu o significado disso?

— Perfeitamente! Fala sobre vida após a morte.

— É mesmo! Isso é muito bom, né? Saber que há vida após a morte...

— Acho que sim.

O jovem ficou durante 10 minutos nessa mesma ladainha, até que o tédio parecia estar tão evidente que nem mesmo ele poderia deixar de se incomodar.

— Sabe… Deus está do nosso lado agora… eu acho que está. — Parecia inseguro, como se tivesse esquecido um texto.

— É, né? Acho que sim.

— E… é ótimo sentir a sensação de que estamos sendo cuidados e… Chega! Não dá mais pra continuar! — Ele chora, colocando as mãos sob o rosto.

— Que foi, cara?

— Posso te contar um segredo? Jura que não conta pra ninguém?

— Claro! Prometo!

— Não sei se acredito em Deus…

— oque? Mas você… então, porque você…

— mamãe me obriga a fazer isso desde que se converteu! Tenho que ir à igreja todos os domingos e, aos sábados, ficar passando de porta em porta “pregando a palavra de Jeová.” Desculpe, Jean. Não queria te desapontar assim, juro!

— Não me desapontou. Sou Ateu.

— Que? Porque não me disse logo?

— Não queria te desapontar.

— Como isso aconteceu?

— O que?

— Como você se tornou ateu?

— Não sei… não foi há muito tempo, 6 anos, acho. Não que eu fosse religioso antes, era “catolaico”, mas me desiludi com a religião. Viu o caso da menininha estuprada por um sacristão? Padre Otávio me disse que a igreja excomunga hereges, desviados, comunistas, mas não estupradores. Depois, ainda por cima, resolvi ler “A Origem das Espécies”, do Darwin. Acho que foi isso. Fui perdendo a fé aos poucos.

— Aconteceu exatamente a mesma coisa comigo! — Ele enxuga as lagrimas.

— E o que você vai fazer agora? Acha que consegue continuar escondendo isso?

— Não sei. Enquanto eu morar com ela, vai ter que ser assim!

— Olhe. Sei que isso não resolve, mas, quando quiser conversar, estou sempre por aqui!

- Obrigado, Jean. Sem querer abusar da sua paciência, mas posso te pedir só mais uma coisa?

- Claro!

- me dá um cigarrinho?

O homem pega o maço próximo aos livros, na estante, e tira, de supetão, um isqueiro do bolso.

— Há quanto tempo não fuma um desses?

— 4 anos, acho.

— Conseguiu ficar sem fumar durante todo esse tempo?

— E sem transar também!

— Você é um super-herói!

E lá estavam eles. Dois jovens livres, leves e soltos, fumando e sentido a tranquilidade. Curtindo, finalmente, os melhores dias de suas vidas.

— Agora eu é que vou te pedir um favor!

— Diga.

— Nunca mais toque minha campainha a essa hora da manhã!

Os dois riem.

Geovani Lopes
Enviado por Geovani Lopes em 30/04/2017
Reeditado em 30/04/2017
Código do texto: T5985592
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