O DEFUNTO SUMIU!

(Da  série:Estórias malucas, pura  criação do imaginário)


A aldeia despertara triste naquêle dia. Seu “Lutero” havia falecido.
Um choro doído ressoava na janelinha de madeira da casa de Candoca que alimentara durante quase sessenta anos um amor platônico pelo finado.
O agora falecido andava “cuspindo barbante”, como se dizia pelos arredores,mas tinha um certo charme que punha em disparada corações quase cumbalidos da “meninada” acima dos sessenta.
Era convicto da atração que exercia e ,assim, num grande esforço desfilava sua elegância cabocla no trecho compreendido entre a sua casa e o armazem do “Generoso”. (Nome pouco condizente para a condição de sovina do comerciante)
“Comercial Generoso” ! Escrito em letras garrafais nas últimas férias de “Generosinho” (o Júnior) ,quase ao final da estradinha de chão, era o quartel general da fofoca.
Por ali falava-se mal de todo o mundo.Fazia-se uma varredura na aldeia classificando-se os  maus pagadores,traidoras e respectivos cornos.
Êstes,vistos com olhares de cinismo pela comunidade.
Uma vez por mês aparecia o Padre “Yeroslaw” .Polaco,exigente e sempre de mau humor.
Reclamava de tudo e só abria um sorriso quando serviam-lhe leitoa à pururuca com farofa doce e  creem (condimento feito a  partir  de  "raíz  forte"  e  beterraba).
Aí,então,o enfurnado derretia-se todo e até arriscava uns passos de Kolomeica, (dança polonesa),para o delírio das carolas que nessa hora davam um jeitinho de pendurar-se ao pescoço do vigário, aproveitando para fuchicar os segredos de alcova da aldeia.
No dia seguinte,dá-lhe sermão e “indiretas” nos fiéis da missa das dez.
-“Bateu em Pedro,prá Paulo chorá”,dizia Candoca,depois de coroar a cabeça branca com as carapuças distribuídas  pelo vigário que acabavam sempre lhe servindo.
Em rápidas pinceladas,eis o cotidiano de uma aldeia plantada nos confins do mundo,ainda que êstes proporcionassem uma vista deslumbrante ao seu redor.
Ergue-se a manhã de julho.A fatídica notícia espalhara-se por todos os recantos.
Começam os preparativos para o velório.
Cinco  leitões são abatidos.Candoca , que secara tôdas as lágrimas na janelinha de madeira, surge trazendo nas mãos um maço de “cheiros verdes”.
Fará o chouriço.
Um grupo de vizinhas desce até o ribeirão para lavar as vísceras.Carregam um mau cheiroso balaio e são seguidas do alto por um bando de urubus.
Alguns homens retornam da mata trazendo os espetos e o braseiro já arde nas cavas .Na cozinha, mulheres põe a mão à massa e um volumoso lote de pães e cucas é preparado.
Generoso,num ímpeto, cochicha:
-“O gole é por minha conta!”...
Depois, reflexivo ,corrige:
_Quero dizer: O gole é de meu estabelecimento e ficará “na conta” dos amigos.Sabem  como está difícil  a vida  de  um  pequeno comerciante.São tantos impostos,taxas, etc...Vocês me compreendem, não é mesmo?
Cachaça,fogo de chão,leitão no espeto,chouriço,pães e cucas...Um inadevertido toque de sanfona e o velório facilmente transformaria-se num baile.
Conversas animadas,algumas pausas para uns “berreiros” quando da aparição de algum parente vindo de longe,anedotas,rezas...De tudo,para todos os gostos. Generoso ,que ficara viúvo à pouco tempo, é  galanteado pelo mulherio.
Uma voz esganiçada irrompe a escuridão da aldeia:
-Seu Generoso!...Vem comer joelho de porco com farinha...Vêeem,seu Generoso,que a noite é comprida.
Ecoam sorrisos e ,generosamente, o galã aproxima-se da mesa armada no terreiro.
O defunto está sózinho. Vai alta a madrugada e a farra,ou melhor,o velório está no auge.
A cachorra “Violeta” de propriedade de Candoca,está no cio.A cachorrada da aldeia e “bicões” vindos de outras bandas,fazem-lhe a corte.
Latidos rasgam a escuridão e a  cachorrada festeira invade a sala.
Arma-se uma violenta briga de cachorros.
Mordem-se,rolam pela sala,latem todos ao mesmo tempo.Embolam-se sob a mesa.
Os homens tentam apartar o  guajú mas são atacados pelos cães.As mulheres sobem nas cadeiras,nos bancos,erguem as crianças sobre os ombros.
Gritaria,choro,latidos,mordidas,e de repente...Apagam-se as velas.
Tumulto generalizado.
Um ruído ensurdecedor e quando estas são reacesas ,observa-se a inusitada cena do caixão caído no assoalho. Está emborcado.Ecoa-se na sala um abismado:
-Ohhhhhh!...
O caixão é colocado em sua posição normal e: cadê o defunto?
Esvasia-se a sala em questão de segundos.Correm todos,abismados,sem tempo sequer para mais um “Ohhhh!...”
Lentamente vão retornando alguns poucos corajosos . Procura-se pelo defunto,e...Nada.
No dia seguinte o caixão,novinho em folha,é devolvido à funerária.O assunto repercute pela aldeia e adjacências.
Lutero desaparecera como num toque de mágica.
Curiosamente,depois do ocorrido,Candoca também não mais foi vista pela aldeia.
Na “Comercial Generoso” circulam centenas de explicações para o fato.
Há quem defenda a tese de que Lutero ressuscitou e Candoca,abriu o platonismo de seu amor e ,assim juntos e apaixonados, fugiram para um lugar distante...
Uma outra ala acredita piamente tenha o casal se transformado em cachorros.
Para a segunda hipótese,há até uma torcida organizada a jurar ouvir uivos e latidos na casa fechada,quando os ponteiros do relógio marcam a meia noite.
São tão convincentes que estão ganhando adeptos,dia à dia,que mostram-se “arrepiados” ao ouvir tais relatos.
Pelo sim,pelo não,tudo o que se pode afirmar de concreto é que:
O faturamento do Generoso,tem crescido generosamente dêsde  então.
Joel  Gomes Teixeira

Texto  reeditado
Preservados os comentários ao  texto anterior:


05/04/2014 19:34 - carlos lopes [não autenticado]
Cômico e surpreendente! Parabéns Iratiense, muito bom mesmo. Um abraço.


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26/02/2011 12:17 - Lourdes Borges
Teu conto é cômico e com bastante suspense. Fiquei curiosa pra saber o sumiço do defunto. Muito bom! Abraços da Lourdes Borges.



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19/02/2011 21:24 - Anita D Cambuim
Um baita suspense que me prendeu do começo ao fim. Parabéns.



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19/02/2011 00:50 - Giustina
Bom voltar a te ler, Joel! Ri de montão! A cena da cachorrada brigando perto do defunto foi demais... rsrsr!



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18/02/2011 19:48 - RobertoRego
Caríssimo Joel, saborosa história essa do "Seu" Lutero e da Candoca (rsrsrs), bem ao seu estilo cadenciado, marcante, singular. Adorei, meu amigo poeta. Lembrei-me de um texto antigo meu, mais ou menos nesse diapasão e fui lá no fundo do baú, postando-o agorinha no RDL ("CHICO MULA"). Meu aplauso, meu amplexo, paz e alegria, estimado cronista.



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17/02/2011 01:32 - CONCEIÇÃO GOMES
Que coisa,mas vai que os dois viraram cachorro, porque ele iriam fugir se eram desimpedidos? Mistério... Voce leu na sua infancia o CAZUZA? Lembra do Velho Mirigido, um negro de quase dois metrs de altura. Ele morreu e tava todo mundo no velório quando ele, de repente resssusitou e com um vozeirão de trovão perguntou: que ocês tão fazendo ai? E foi correria prá todo lado.Não sei se lá tinha o leitão pururuca, bom demais, até em velório.



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17/02/2011 01:14 - Maria Dilma Ponte de Brito
Cômico e bem contato esse texto. Não vou arriscar o destino de Lutero e Condoca, mas que estou matutando estou rsrsrs



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16/02/2011 19:03 - Lilian Rei no nonhardt
Esse conto impertigou-me, além da beleza de seu enredo e maestria da narrativa, fiquei varando aqui com meus botões, pensando nesse desfecho mágico! Parabéns poeta! abços



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15/02/2011 23:14 - Malgaxe
Lutero deve tá escondido com candoca em alguma casinha la no serro do leão, vivendo de amor, rsrsrsrs Belo conto nem tão surreal assim, do defunto sim, mas do Generoso...Já vi este camarada com o nome Teminski, iujo, stefaniak, josé petchak, e outros, rsrsrsrsr Abraços meu caro