Lembranças...

Olhos inchados de uma alergia, passei deitado boa parte da tarde de domingo, e não sei se por conta dessa posição horizontalóide , as ideias que surgem lá na raiz dos pés, circulam melhor sem a força gravitacional forçando-as para baixo.

A parte do meu corpo que mais toca o local onde vivo, a casa onde moro, o planeta que habito são meus pés, a sola deles, e por isso acredito que mesmo que todos os meus sentidos captem informações sobre o que está à minha volta e até influenciem nas coisas que penso e escrevo, as ideias mais originais e mais autenticas crescem assim, do contato dos pés no chão....

E dizer que até pouco tempo eu pensava que as minhas melhores ideias vinham quando eu tomava banho, imaginava que sempre encontraria solução para alguns problemas durante o longo banho, especialmente banho quente, e supunha que quando a agua quente molhava minha cabeça e nuca, ativaria assim alguma espécie de botão virtual localizado no meu córtex cerebral, uma espécie de botão de ignição termo sensível,um "starter" mas não me dava conta que não era nada disso...

Banhos descalços e a agua molhando os pés descalços, esse sim é o segredo...ai está o botão verdadeiramente...

O cérebro é só um escravo dos desejos dos pés...

Experimente caminhar descalço tocando os pés na superfície úmida e gelada da beira de uma praia de mar, e entendera o que estou propondo... tua mente pode te levar somente a lugares que já conheces, mas os pés não...são os pés que te levam a lugares inéditos e desconhecidos…são os pés que canalizam os sentimentos dessas descobertas até a mente, mas por um truque biológico, a gente pensa que quem manda no corpo é a mente...ledo engano.

Perdoável pois não temos consciência desse alegre engano.

Me sinto bem quando deixo fluir as ideias, quando transfiro desordenadamente essa minha loucura passageira para o papel.

Evidente que isso é uma brincadeira, um absurdo bizarro, fisiologicamente sabemos da importância dessa massa cinza que carregamos dentro desse capacete ósseo que chamamos de cabeça.

Essa coisa divertida de contar coisas engraçadas é da natureza do ser humano... contamos histórias e estórias o tempo todo: no ônibus, na volta da escola, no trabalho, quando nos reunimos para jantar....

Contamos como foi o dia, as coisas que fizemos, o que vimos, o que experimentamos.

A narração de histórias é um ancestral que a gente tem com a palavra.... Desde sempre o homem precisou contar histórias para entender a vida.

Assim como um jovem pai , brincando arremessa levemente e com segurança seu pequeno filho para o alto , faço o mesmo com as palavras, metaforicamente o pai deseja que e o filho sinta-se livre, que no futuro se desprenda e que curse seu próprio voo...é assim que vejo esse gesto comum em jovens pais...ele nem percebe mas assim está dizendo para seu filho que o ama e que a sensação de liberdade é um sentimento bom...

Não lembro se meu pai me arremessou para cima (eu mesmo fiz isso algumas vezes com meus dois filhos e tenho que perguntar para ele uma hora dessas se ele tinha esse habito), mas lembro que ele contava estórias quando eu era bem pequeno, e penso que isso moldou um pouco minha personalidade.

Ele repetia sempre a mesma estória de um cavalo branco que chutava para muito longe uma bola, e segundo ele eu atentamente prestava muita atenção e parecia encantado com a estória que ele sempre repetia...

Cresci e quando eu era bem mais novo , imaginava e até escrevia estórias inventadas por mim mesmo, coisas infantis e secretas...de la pra ca muitas coisas mudaram....fiquei adulto, virei gente grande.

Estudei, me formei, namorei, casei, tive filhos e minhas preocupações cresceram junto com minhas alegrias e o tempo, antes meu aliado, agora insistia em me envelhecer e aumentar ainda mais minhas preocupações metafisicas com a vida e com o futuro.

Quando a gente cresce,a alma vai envelhecendo com o corpo, a gente vai ficando menos tempo descalço, e a vontade, essa necessidade de escrever pode ter ido se esconder no fundo de alguma gaveta de algum móvel velho que deve estar na casa dos meus pais...

De repente o mundo começou a parecer muito grande e eu muito pequeno novamente...

Jovens pensam que a vida é infinita e que o mundo os pertence, mas o tempo.ahhh..o tempo novamente se encarrega de mostrar quem é quem....que somos quase nada....

Uma hora dentro desses dias de envelhecimento senti que precisava dizer coisas, contar a vida sob o meu ponto de vista...mas sabia que tudo o que tinha para ser escrito já fora escrito por outras pessoas de todos os jeitos possíveis.

Só me restava, assim como meu pai fazia todas as noites antes de eu ir dormir, recontar a mesma velha história de modos diferentes ...

É o que eu faço, é o que eu farei, vou contar repetidamente a estória desse cavalo branco que chuta a bola pra longe e corre atrás dela, e a chuta para longe novamente e assim vai vivendo, correndo e chutando...resgatando minha afetividade comigo mesmo e com o mundo...

A diferença que esse cavalinho branco agora tem um nome...chamo ele de Luiz.

Luiz Schaun
Enviado por Luiz Schaun em 02/06/2017
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