A DOENÇA SEM CURA
Ele não morrera. Fora somente um susto para o velhinho safado. Aliás, este expediente de idas e vindas ao Hospital Municipal Maria José Biancardi amiudara-se nos últimos meses para o hipocondríaco seu Mário e, em várias vezes ocasiões eu, na qualidade de motorista da família, era quem o levava, às pressas, à emergência daquela casa de saúde.
Desta vez, porém, ele se mostrara mais ranzinza do que de costume, em especial com uma enfermeira negra.
- Não quero nada! – Dizia sempre que a dita enfermeira vinha lhe fazer com que tomasse o remédio nos exatos horários prescritos pelos médicos.
Os filhos não tinham tempo para o velho rabugento e octogenário. Trabalhavam em profissões liberais e viviam longe: um era advogado em Altamira; o outro, engenheiro de minas, era funcionário de carreira da Petrobrás e residente em Manaus. Por serem ambos ocupadíssimos, cabia a mim e à matrona, esposa do velho, cuidar do doente casmurro.
- Meu velho, não seja insolente. Tome o seu remédio!
- Manda vir outra enfermeira. Não aturo esta – insistiu o velho.
- Me diga por quê? – perguntou d. Lucinda, a mulher do enfermo, já nesta altura muito agastada.
- Não gosto dela, ora! – disse simplesmente.
A enfermeira não dignou a proceder nenhum comentário; apenas retirou-se ofendida.
Noutras vezes, externou o seu desconforto em prestar serviço a seu Mário e recusou-se a ir, mas sua chefe a convenceu a fazer o penoso trabalho e não dar trela ao mau humor do velho doente. “Liga não, menina!”, disse-lhe após um tapinha no ombro. A enfermeira, mesmo tempo relutante e mais tranquila, foi-se. É que o corpo médico e o diretor do hospital já haviam sido comunicados pela chefe das enfermeiras sobre os perrengues da sua subalterna com o zangado paciente do 28.
Quando a enfermeira entrou no quarto lá pela meia-noite da sexta-feira, o médico de plantão já se encontrava lá numa prosa deveras agradável com seu Mário, posto que ambos davam estrepitosas gargalhadas. Ao vê-la, o velho fechou a cara.
- Ela de novo! – resmungou.
- O que tem ela? – perguntou o médico que conhecia o paciente desde sua chegada em Brasil Novo para trabalhar no hospital municipal havia mais de três anos.
- Não gosto dela, doutor. O senhor não poderia trocar ela por outra?
- Receio que não! – O médico riu e saiu do quarto. A enfermeira (naquela noite eu soube que se chamava Amanda) que havia terminado seu trabalho e silenciosa também se retirou, fechando a porta atrás de si suavemente.
Na manhã seguinte, antes da troca de funcionários para o início do novo plantão, dr. Walter Luciano voltou com uma boa nova.
- Seu Mário, o senhor já está bem melhor e voltará para casa. Está de alta.
O velho fez a cara do urso do desenho do pica-pau e, assim brocochô, enrolou-se nos lençóis com um gemido sôfrego.
O médico se foi. Saímos atrás dele eu e d. Lucinda. Ela adiantou-se e puxou-o pelo jaleco. O médico volveu para ela solícito.
- Sim, minha senhora...
- Doutor, qual era mesmo a doença de Marinho?
Dr. Walter a olhou com os olhos azuis inquisidores.
- É grave? – insistiu d. Lucinda.
- Muito! ...
- O senhor vai fazer o encaminhamento dele para o Hospital Regional?
- Não.
- Por que não?
- D. Lucinda, a doença dele é grave, mas não é nada que possamos tratar. Aliás, nenhum médico...
- Diga doutor, que doença é esta?
- Preconceito... sei lá! Hipocrisia, talvez...
Vi a velha abrir a boca, estupefata, enquanto o médico ganhava distância pelo corredor de um branco imaculado, balançando entre os dedos um estetoscópio.