A TEODICÉIA DE LEIBNIZ

A TEODICÉIA DE LEIBNIZ

Quando se fala, em conferências, aulas ou entrevistas, na palavra teodicéia, constata-se que a maioria das pessoas desconhece seu real sentido e funcionalidade. Deste modo, para estudarmos a filosofia (e a teologia) moral precisamos conhecer alguma coisa a respeito da teodicéia.

Conceitualmente, teodicéia é o conjunto de argumentos que, em face da presença do mal no mundo, procura defender e justificar a crença na onipotência e suprema bondade do Deus criador, contra aqueles que, em vista de tal dificuldade, duvidam de sua existência, bondade ou perfeição. O verbete teodicéia, em sua etimologia nos remete ao francês, théodicée e ao alemão, theodicee, um vocábulo cunhado em 1710 pelo filósofo alemão G. W. Leibniz. A palavra é originária do grego, onde s (theós) é “deus” e  (díké) é “justiça”,

Nesse particular, teodicéia é um campo da teologia natural (alguns afirmam ser da filosofia) que defende a onipotência, a onisciência, a justiça e a bondade de Deus. É contra a idéia de que a presença do mal e do sofrimento no mundo reduzem ou minimizam os atributos divinos. A finalidade de teodicéia é falar sobre a justiça de Deus.

O grego Epicuro († 270 a.C.) lançou, pela primeira vez, no século IV a.C., alguns rudimentos de um raciocínio que mais tarde daria origem à teodicéia: se existe um Deus que é bom, e que criou o mundo, como é possível a existência do mal? Seria Deus (ou “os deuses” de Epicuro que era pagão, politeísta) verdadeiramente justo? Essa questão vem perturbando os pensadores desde a mais remota antigüidade. O assunto há séculos vem dando margem a controvérsias e debates, e serve de munição para os argumentos dos ateus, para os quais, por causa da existência do mal, Deus não existe, ou se existe, não é bom.

A expressão teodicéia foi criada, como vimos, por Leibniz em um ensaio em que o filósofo debatia a bondade de Deus, tentando estabelecer assim um tratado racional sobre Deus, sobre a liberdade do homem e a origem do mal. Perante o problema do mal, o filósofo assumiu uma posição otimista, concluindo que o mundo criado por Deus ainda é o melhor dos mundos possíveis. A teodicéia surgiu a partir dos rudimentos de uma “tradição” vigente, eminentemente religiosa, onde a natureza era um sistema onde o acaso é fruto de um determinismo que os homens desconhecem, e o mal é um elemento necessário para que ocorra o equilíbrio (a estética, já vista), uma perfeição da qual o ser humano conhece somente uma parte do todo. Ou seja: dessa doutrina, se pode inferir que todo o mal particular concorre para um bem universal. Assim, se a sabedoria de Deus escolheu este mundo para ser o lar de sua Criação, não é lícito duvidar que este seja o “melhor dos mundos”. Dentro desse ângulo de visada, pode-se ler que, em seus ensaios sobre a teodicéia, Leibniz afirmou:

A imperfeição original das criaturas põe limites à ação do Criador que tende para o bem. E como a matéria mesma é um efeito de Deus, não pode ser ela mesma a fonte do mal e de sua imperfeição. Mostramos que essa fonte se encontra nas formas ou ideais dos possíveis, e que não é algo oriundo de Deus (In: Teodicéia, 31).

Pois, assim como um mal menor é uma espécie de bem, do mesmo modo um bem menor é uma espécie de mal, se criar obstáculos a um bem maior; e haveria algo a ser corrigido nas ações de Deus, se houvesse um meio de fazer melhor. Deus quer fazer um bem maior, mas esse desejo – segundo Leibniz – às vezes esbarra na limitação humana. Isto não significa cair na armadilha do otimismo leibniziano, onde tudo é para o melhor, e até o mal contribui para isto. O homem é um ser de antecipação, legítimo zôon proleptikon (um animal político) e não somente alguém amparado no presente e saudoso do passado. O que causa o mal não é a matéria, mas a limitação da natureza criada. Essa referência ao chamado “mal metafísico” (oriundo da limitação humana) é a perspectiva principal do mal na concepção de Leibniz. Ela é, sem dúvidas, a porta de entrada para abordar (e entender) tanto o mal físico (a dor) quanto o mal moral (pecado).

A teodicéia – trocada em miúdos – se formos buscar o animus de Leibniz, seu criador, é muito claramente uma teoria criada – como o livre-arbítrio de Santo Agostinho – para “defender Deus”, muitas vezes questionado (e até acusado) pela objeção do mal. Na teologia protestante contemporânea, vamos encontrar o suíço K. Barth († 1968) que afirmou que a teodicéia de Leibniz é uma “lógica quebrada”, onde Deus traz o prêmio (o bem) com a mão direita, e o castigo (o mal), com a esquerda (in: Gott und das Nichtige [Deus e o nada]. Frankfurt, 1963).

Conhecendo o pensamento de Plotino († 210 d.C.), podemos penetrar em cheio no problema da teodicéia, o que, irreversivelmente nos remete à obra de Gottfried Wilhem Leibniz († 1716). O verbete teodicéia, como foi visto, significa, etimologicamente, a justiça (díkaios) de Deus (Theós), e designa o estudo sobre a possibilidade de se solucionar o problema de como se pode afirmar conjuntamente, sem contradição, as três proposições seguintes: Deus é todo poderoso; Deus é absolutamente bom; contudo o mal existe. A teodicéia surge, então, como um combate a favor da coerência, em resposta à objeção segundo a qual somente duas das proposições são compatíveis.

Como é possível compatibilizar o poder e o amor de Deus com a existência do mal? Pois em sua obra, Leibniz fala da existência de três tipos de mal. Segundo ele, o mal pode ser metafísico, físico e moral. O mal metafísico consiste na simples imperfeição, o mal físico no sofrimento e o mal moral no pecado. Nessa conjuntura, o mal metafísico é intrínseco ao próprio conceito de criação. Segundo o autor, Deus criou o melhor dos mundos possíveis. Não poderíamos, de modo algum, pressupor um mundo melhor que esse, pois isso tornaria inconsistente o caráter de Deus: se fosse possível um mundo melhor, ou Deus não o teria criado por ser impotente, ou por desconhecê-lo ou, ainda, por ser mau, o que não se pode admitir. Assim, por uma razão mais de ordem moral do que propriamente metafísica, Leibniz afirma que Deus só pode ter criado o melhor dos mundos possíveis:

O decreto de Deus consiste unicamente na resolução que tomou, depois de ter comparado todos os mundos possíveis, de escolher o melhor e de dar-lhe a existência pela onipotente palavra do Fiat, junto com tudo o que este mundo contém. Por isso Deus não só resolve criar um universo, mas que também resolve criar o melhor de todos (G. W. Leibniz, Teodicéia: Ensayos sobre la bondad de Dios, la libertad del hombre y el origen del mal. Buenos Aires, 1946).

Ora, o mal metafísico é intrínseco a este mundo pelo simples fato deste mundo ser criado, uma vez que a idéia de criação implica a idéia de limitação. Leibniz o explica de forma metafórica:

Assim como não é possível que exista um círculo infinito, dado que todo círculo se vê delimitado pela sua circunferência, resulta da mesma forma impossível que haja uma criatura absolutamente perfeita (in: Diálogo verídico en torno a libertad del hombre y la origen del mal. Madrid, 1990).

A admissão do mal metafísico não é um grande problema aos olhos de Leibniz. A grande questão consiste em como explicar também o mal moral e o sofrimento no mundo, sofrido pelo inocente. Pois, não se pode negar que há no mundo um mal físico (quer dizer, sofrimentos) e um mal moral (quer dizer, crimes), e que o primeiro não se distribui nesta terra na proporção do segundo, como, ao que parece, exige a justiça.

A questão é, então, como Deus permite o mal moral e o sofrimento. A solução de Leibniz consiste em recorrer a um conceito fundamental de sua filosofia, o conceito de harmonia preestabelecida. Leibniz postula que o universo é composto de uma substância simples primordial chamada mônada. Para ele não pode haver causalidade no universo porque as mônadas são fechadas em si mesmas, e portanto não reagem diretamente umas às outras. Para explicar então que seja possível que, por exemplo, eu fale (ou seja, que aquilo que desejo se realize), é preciso que haja uma harmonia preestabelecida por Deus de modo que uma mônada reaja à outra mônada, não por causalidade, mas por algo que poderíamos chamar de “programação finalística interna”.

Para que uma mônada cumpra um determinado fim, é preciso que outra mônada reaja de modo complementar e orgânico à primeira. Desenvolvendo a tese do ocasionalismo de N. Malebranche († 1715), Leibniz pressupõe que isso é possível porque Deus, desde sempre, foi um ‘programador competente’, havendo então uma harmonia preestabelecida no universo. Assim, há uma necessidade que não é inerente à natureza, mas lhe foi impressa por Deus. Ora, se há uma harmonia preestabelecida no universo, o conceito de mal tem que se inserir na idéia dessa própria harmonia.

Santo Agostinho reduzirá o mal ao mal moral, fruto do pecado do homem. Leibniz, por sua vez, porá todos os males sob o guarda-chuva do mal metafísico. Porém, e aí está o problema que nos interessa, a inocência de Deus e a explicação desde a totalidade harmônica têm o seu calcanhar de Aquiles, qual seja, deixar descoberto e enfraquecido o mal sofrido e experimentado existencialmente. Quem se interessa por um Deus inocente, mas distante e ausente da ação prática do homem? As duas respostas que analisaremos são tentativas válidas, mas insuficientes e cheias de aporias

Como Agostinho, Leibniz está convencido que o mal moral e o sofrimento só são mal da perspectiva da criatura que, por causa do mal metafísico, não pode percebê-los como um bem. Deus não pode de modo algum querer o mal, nem pode ser concebido como um ser incapaz de evitá-lo. A única solução possível é imaginar que o mal na verdade não é um mal, mas um meio para se realizar um bem, como no caso de José do Egito. Por isso Leibniz afirma que

Deus quer antecedentemente o bem, (...) e com respeito ao mal, Deus não quer de nenhum modo o mal moral, e não quer de maneira absoluta o mal físico e os sofrimentos (...). Pode-se dizer do mal físico que Deus o quer muitas vezes como uma pena devida pela culpa e com freqüência também como um meio próprio para um fim, isto é, para impedir males maiores ou para obter bens maiores (in: Teodicéia. Op. cit.)..

No entanto, a inserção do mal moral e do sofrimento na harmonia preestabelecida não elimina a responsabilidade do homem pela sua execução. Para compreendermos porque, é preciso termos em mente a idéia leibniziana de liberdade. Para defini-la, o autor lança mão de três conceitos: inteligência, espontaneidade e contingência: a inteligência é o conhecimento da finalidade da ação, daquilo que se deve fazer; a espontaneidade é o fato de uma ação proceder do próprio agente, e não lhe ser externamente imposta; a contingência é a exclusão da necessidade lógica ou metafísica. Se o homem é concebido como livre, se suas ações são concebidas como inteligíveis, espontâneas e contingentes, então o homem é também causa do mal, mais precisamente, sua causa imediata. Como diz Leibniz,

O livre-arbítrio é a causa próxima do mal (moral e do sofrimento), se bem que seja certo que a imperfeição originária das criaturas (...) é a primeira (causa) e a mais distante (Idem).

A teodicéia de Leibniz não é apenas um novo nome para a filosofia da religião, porque foi escrita por um dos filósofos mais representativos da filosofia alemã. Hoje se diz que a Teodicéia é uma reabilitação teológico-filosófica da práxis da divindade. Como diz o poeta popular (Chico Buarque de Holanda):

...você que inventou a tristeza, ora tenha a fineza de desinventar...

O pedido de desinventar a tristeza, é o clamor do sofrido a seu Deus-Criador, todo-poderoso, que sendo autor de tudo, não pode ficar alheio ao surgimento da tristeza, da dor e do mal. Na prática, constata-se que a teodicéia se apresenta classicamente como um processo jurídico: Deus é colocado no banco dos réus por permitir (ou ser causa) o mal no mundo. A razão humana desempenha um papel triplo; ela é simultaneamente promotora, defensora, e juíza. O empreendimento da teodicéia não é primeiramente o de acusação contra Deus, e sim o da sua defesa frente a ocorrência do mal no mundo. Mas só se defende alguém, contra quem pode ser levantada uma suspeita e processo. A partir da premissa, que Deus não precisa de defesa, evidencia que a acusação solerte assacada contra ele é uma heresia. Este é um dos motivos pelos quais muitos teólogos rejeitam o direito do ser humano sequer colocar tal questão.

Algumas vezes as soluções sugeridas acabam demonstrando fraquezas epistemológicas imanentes inesperadas, outras vezes elas se apresentam incompatíveis com outros desenvolvimentos internos ulteriores da ciência em questão, ou, em alguns casos mais otimistas, os avanços estruturais da ciência permitem uma solução ainda mais elegante para o mesmo problema. As ciências críticas como a filosofia e a teologia sistemática apresentam, além destes motivos, uma razão ainda mais profunda para sua constante revisão, a saber, que grande parte dos seus problemas não exige soluções definitivas, e sim, simplesmente, nos desafiam a uma constante reflexão.

Um destes problemas clássicos, que pertence ao âmbito interdisciplinar da teologia e da filosofia, é a antiga questão da teodicéia. Uma das maiores dificuldades da questão da teodicéia é a justificativa pela sua própria existência, posto que muitos negam não apenas o dever, mas também o direito de se colocá-la. Classicamente se compreende a teodicéia como a pergunta pela justificativa do mal no mundo, dada a existência de um Deus onipotente e bom. Expresso de uma forma universal, o problema é até mesmo anterior ao cristianismo. O filósofo Epicuro, por exemplo, elabora-o de forma precisa e ao mesmo tempo sucinta, lançando duas perguntas elementares:

• Pode Deus eliminar o mal existente no mundo?

• Quer Deus, de fato, eliminar este mal?

À lógica humana (abstraída a questão do mistério) apenas quatro respostas são possíveis:

1. Ele consegue, mas não quer... Neste caso Ele não é realmente

bom;

2. Ele quer, mas não consegue... Então Ele não é onipotente;

3. Ele nem quer, nem consegue. Pior ainda, neste caso Ele não é

bom, nem onipotente;

4. Ele consegue e quer. Mas então, por que ainda existe mal no

mundo?

A formulação de Epicuro, que provocou o start da teodicéia moderna, é especialmente urgente no contexto da teologia cristã, a qual postula explicitamente a existência de um Deus não apenas bom, mas também onipotente. A maior parte dos escritos de Leibniz, autor sempre muito citado, foram ocasionais, não muito extensos, mas em grande quantidade, havendo sido reeditadas com freqüência na forma de Obras Completas, ou quase completas. Os livros são geralmente breves, por vezes quase como artigos. Neles construiu uma filosofia racionalista, utilizando as linhas fundamentais do cartesianismo, este por sua vez mais platônico do que aristotélico. As idéias são alcançadas independente da experiência.

Todavia, a tese leibniziana da idéia inata é mais moderada que a do Descartes. Não são inatas as formas atuais do pensamento, mas apenas a potência ou disposição para fazê-las surgir ao contato com a realidade. A correspondência das idéias com as realidades exteriores decorre da harmonia preestabelecida entre as idéias e as realidades. Ao sustentar que o mundo que está aí é o melhor possível, Leibniz tenta escapar dos problemas que vinculam males naturais e males morais (a idéia de que a natureza castiga a humanidade por conta dos pecados de nossos ancestrais). Entender que os males naturais decorrem de males morais e, com isso, pecado e sofrimento vêm do Criador é fazer de Deus um tirano. Mas, de qualquer forma, resta a pergunta: como explicar o sofrimento?

A resposta dada por Leibniz é a seguinte: Deus criou a matéria, mas não a forma. A verdade de tudo, incluindo a essência de qualquer objeto possível, está contida nas formas eternas. Antes de Deus decidir qual dos mundos possíveis escolheria para torná-lo real, ele olhou para todas as formas, calculou qual delas deveriam encaixar-se entre si e escolheu a melhor de todas as combinações possíveis. Ao escrever uma justificativa de Deus, Leibniz deu-lhe o nome de teodicéia, termo que passou a significar por extensão toda a teologia natural, isto é, a filosófica. Nesse terreno, dois são os princípios resultantes da análise racional das idéias:

• o princípio de contradição, que rege o possível; e

• o princípio de razão suficiente, que rege as existências.

A partir destes princípios se formulam os argumentos da existência de Deus. Leibniz admitiu prova a priori da existência de Deus; formulada por Santo Anselmo († 1109), que foi logo depois refutada por Kant, naquilo que denominou prova ontológica. O mundo criado por Deus é o melhor possível, sendo o mal um destaque do bem, como a sombra em relação ao objeto. Relativo ao bem, que o limita ou enfraquece, o mal não possui realidade clara. Sua natureza é relativa ou privativa: “o mal é uma privação do ser, ao passo que a ação de Deus é positiva” (Teodicéia, op. cit.). Leibniz o compara com a inércia natural dos corpos. Sem realidade ontológica, corresponde a uma limitação de perfeição do ser. A esse respeito Voltaire († 1778) já havia dito que Deus quando dá um mal está preparando um bem maior (in: Candide, 1759).

Para o filósofo, o mal, estritamente falando, não é nada. Se a teodicéia de Leibniz está correta, então o mal metafísico está na origem do mal moral e do sofrimento: a imperfeição do homem é a causa dele discernir equivocadamente seus fins e, assim, de escolher de modo errado seus meios, praticando o pecado (mal moral) e reclamando o sofrimento como pena, sobre si ou sobre outros. Como ele mesmo diz,

[...] de um modo prévio a todo pecado, existe em todas as criaturas uma imperfeição original procedente de sua limitação (In: Monadologia, Lisboa, 1989.

Segundo Leibniz, a perfeição de Deus é plena em três atributos essenciais: o poder, a sabedoria e a vontade. A potência de Deus é fonte de tudo, o conhecimento contém o detalhe das idéias, e a vontade produz tudo segundo o princípio do melhor. É assim que Leibniz introduz na sua lógica argumentativa o conceito de “o melhor dos mundos possíveis”. E desse conceito ele tentou fazer aparecer a resposta ao problema do mal. Aqui está a essência do mal: é a criatura, e não Deus, o autor do pecado. Mas isto também não nos oferece uma solução. Como o teólogo anglicano T. Clark escreveu:

Causas deficientes, se as há, elas nos não explicam porque um Deus bom não abole o pecado e garante ao homem sempre escolher o bem mais elevado (In: God and evil (Deus e o mal), Londres, 1952).

As premissas da teodicéia de Leibniz são filosóficas, por isto não têm maiores sustentações teológicas. Ele fala da responsabilidade moral de Deus de criar o melhor dentre os mundos possíveis. Entendemos tratar-se de uma visão invertida. Deus não escolheu este mundo porque ele é o melhor; ao invés, ele é o melhor porque Deus o escolheu.

Nesse aspecto, as escolhas de Deus não são determinadas por nada ou ninguém fora dele mesmo. Assim, a visão de Leibniz também tende a eliminar a responsabilidade do homem pela ruptura, ao representar o pecado por pouco mais do que um infortúnio que lhe sobreveio. Novamente, a Bíblia é muito clara ao declarar que o homem é responsável pelo seu pecado. Na oração de arrependimento de Davi, no Salmo 51, ele põe a culpa não em Deus, nem em sua mãe, nem em Adão, embora todos fossem elos na cadeia que levava às suas ações pecaminosas. Ao contrário, com sinceridade Davi põe a culpa no pecador: ele mesmo.

Algumas idéias de Leibniz são confusas, ensejando críticas e discordâncias de seus contemporâneos, dos teólogos das igrejas e dos intelectuais de ontem e de hoje. Por exemplo: ele diz que o mal não é oposto do bem, mas a falta dele. Não é a mesma coisa? Tais premissas são pontos de teologia exarada da cabeça do filósofo. O caso é que suas teorias são pouco aceitas pela maioria. Para uma melhor compreensão delas, damos abaixo uma panorâmica geral:

Deus podia ter escolhido em mundo sem males, mas se assim não o fez é porque o mundo com males é muito superior ao mundo sem males. É verdade que se pode imaginar mundos possíveis sem pecados nem misérias, fazendo com eles utopias e novelas, porém esses mesmos mundos seriam muito diferentes do nosso quanto ao bem, pois Deus quer antecedentemente o bem e conseqüentemente o mal (Teodicéia, op. cit)..

Entendemos que o autor peca, aqui, por uma certa arrogância (querer saber o que Deus podia ter escolhido), por uma visão pueril (o mundo com males é muito superior ao mundo sem males) e por uma distorção teológica (Deus quer antecedentemente o bem e conseqüentemente o mal). É bom frisar que Leibniz é um filósofo, razão pela qual sua obra é meramente apologética. Não questiona. Por fim, cabe-nos concluir que o Deus que emerge da teodicéia de Leibniz é uma divindade racional, diverso do Deus dos cristãos, que é graça e misericórdia acima da justiça.

Os teólogos mais tradicionais entendem que o núcleo de qualquer teodicéia aponta para a “defesa do livre arbítrio”, que se ocupa, inicialmente, do mal moral (pecado), mas que pode ser distendido para se ocupar de grande parte do mal natural. A defesa do livre arbítrio preconiza que a possibilidade de os seres humanos terem certo tipo de liberdade, uma escolha livre e responsável, que é um grande bem, mas, para quem a possui, haverá a possibilidade natural do mal moral. A partir dessa premissa, Sartre disse, por causa do livre-arbítrio, que o ser humano nasce condenado à liberdade.