Punição para a Inocência

Não pretendo falar aqui do romance de Agatha Christie, que, por sinal, ainda não li. Quero sim me referir ao triste episódio do Césio 137 que um programa de televisão exibido recentemente trouxe à baila.

Quase vinte anos depois, as pessoas ainda pagam o preço pela inocência que tiveram e que permitiu ocorrer uma horrível contaminação de modo absurdamente paulatino e sem intenção. Acredito que mesmo os donos do local onde a máquina de radioterapia estava abandonada não tiveram intenção de fazer mal às pessoas.

Não que eles não tenham que responder pelas conseqüências que o desleixo no fechamento da clínica causou. O que tento inabilmente dizer é que eles foram ingênuos o bastante para pensar que jamais alguém entraria lá para tentar, de alguma forma, tirar proveito do espólio tão valioso quanto acessível que fora deixado para trás.

Igual inocência (para não dizer ignorância ou desconhecimento de causa) tiveram os dois amigos que, desempregados e coagidos pela fome, não imaginaram que a pesada e providencial peça de chumbo que encontraram continha um mortífero material. Só muito mais tarde é que eles associaram o "mal-estar" que sentiam ao fruto daquele "roubo".

Depois de aberta no ferro velho para o qual foi vendida, a peça liberou um estranho (e letal) pó que brilhava no escuro. Ah, e como os olhos daquelas pessoas inocentes emitiam igual brilho (este de espanto) ao ver o maravilhoso fenômeno!!! Muita gente quis ver a diferente coisa que Deus havia feito surgir ali para provar que era capaz de grandes proezas...

E assim, circulando, pó e peça, inocentemente entre um e outro habitante de Goiânia, foi se disseminando toda a letalidade e malefício do Césio 137.

Pegas de surpresa, as pessoas não sabiam o que fazer. As autoridades (num país recém-saído de uma transição política) muito menos. As tentativas de combater a tragédia foram conduzidas de forma afobada e com algum despreparo. No fundo, ninguém soube o que fazer.

Atrevo-me a dizer que, mesmo hoje, depois de tanto tempo, muita gente ainda não sabe o que fazer, pois além da doença e da tristeza, impõe às vítimas um pesado e inútil preconceito. Por absurdo que pareça, apesar de todos os avanços, continua existindo gente despreparada para o mundo, incapaz de ter consciência social (humana, solidária). Gente inocente (aqui, de novo, em substituição a ignorante) que, um dia, pode também ter de arcar com um custo por causa disso.

Porque em tempos de aquecimento global, de guerra no Iraque, de questionamentos sociais intensos, a tragédia de Goiânia faz-se atualíssima e o programa que a relembrou não foi passadista ou atrelado a 1987, mas sim um inquietante sinal de alerta...