Coração em Descompasso

Meados de abril no sudeste do Brasil. O outono anunciava o fim do período das chuvas frequentes e mais fortes e o início de elaboração de tapetes de folhas caídas.

Voltava num desconfortável ônibus para São Lourenço, sul de Minas Gerais. São Lourenço: a terra que jorra águas que curam; a capital espiritual do mundo...

Viajei até a parada em Resende, município do Rio de Janeiro, satisfeito por viajar sem ninguém ao lado, portanto com menos desconforto e na companhia de boa leitura.

Embarca em Resende e senta-se ao meu lado senhor mestiço, como a maioria dos brasileiros, que arriscaria afirmar, que já passara dos setenta.

Minha experiência de intenso convívio comigo deu-me a impressão, que tenho espécie de crachá energético facilitando, no primeiro encontro, a realização de catarse. E, assim aconteceu com o companheiro dessa viagem.

Disse-me, sem sequer observar que o livro em minhas mãos indicava o interesse em escutar outro autor: “peço licença e ao mesmo tempo compaixão, mas preciso que escute meu desabafo sobre experiência vivida, nessas duas últimas semanas, que prorrogou minha vida física e deu-me tempo para muitas reflexões”.

Alguém poderia negar a esse pedido? Meu silêncio acompanhado de, certamente, expressão de concordância, encorajou o companheiro de desconfortável viagem, a falar sem permitir interrupções. Sua ansiedade em desabafar fez-me ouvinte exclusivamente.

Acabei de sair de internação, para corrigir cardiopatia que avisava a proximidade de fim de minha participação na peça da vida. Meu coração batia num ritmo muito lento, fora de compasso e com paradas frequentes.

Enquanto esperava a burocracia da autorização do procedimento pela empresa operadora de meu plano de saúde, tive bastante tempo para reflexões.

Que causara essa patologia? Aí, de mesmo modo, como dizem que ocorre com os afogados, filme em alta rotação desfilava imagens como resposta.

Será que fora a rebeldia à autoridade dos pais na infância, que se prorrogou indefinidamente a qualquer relacionamento de subordinação? Será que fora aquela sexualidade selvagem irrompida na puberdade, que me dominou durante toda a juventude? Ou será que foram os vícios, que hoje percebo que foram grandes agressões tanto ao meu corpo, quanto a minha psique? Ou, ainda, aquela vida árdua de trabalho com a constante preocupação de formar patrimônio, que garantisse livrar-me de passado sem qualquer conforto material?

Será que foi a grande decepção de não ter sido o fantasiado amante, esposo, pai, profissional, professor, esportista, enfim, excepcional “bombril” para todos os papéis a ser desempenhados. A fantasia da perfeição, para compensar vida passada de vícios, passionalidade e inquietude?

Pois bem, ouvinte compassivo, veio a tecnologia e, com seu desenvolvimento, o “marca passo”. Acabei de instalar um e o coração não dá mais paradas e bate num compasso considerado normal, para nós humanos, 60 batidas por minuto.

Entretanto, no final do desfile dessas imagens como se estivesse me afogando, veio outra dúvida: aquelas prováveis causas enumeradas teriam sido causas, ou efeitos de um coração que batia fora do ritmo e espalhava terror sobre o organismo?

Nos últimos dias, não sei se para mais me confundir, ou para ajudar-me a responder, a assistente social da organização do hospital emprestou-me livro, que falava sobre reencarnação, carma e vidas passadas. Além disso, vinha com espécie de revelação, para mim agnóstico, de que o que somos verdadeiramente não é isso que conseguimos observar: nosso corpo físico; nossa sensitividade; nossas emoções; nossos pensamentos. O que somos verdadeiramente é aquilo que reencarna e vive para resgatar carma. Roteiro repetido numa ciranda de nascimentos e mortes nesse planeta, para aquilo que verdadeiramente somos possa evoluir.

No contexto bíblico é o filho pródigo, após esse itinerário evolutivo, de volta à Casa do Pai.

O motorista abre a porta que o isola dos passageiros e grita: daqui a três minutinhos vou parar para o senhor, que quer descer em Itamonte, município de Minas Gerais.

O companheiro de viagem interrompe seu desabafo, pede-me licença, e antes de descer, finaliza: cheguei à conclusão nesse período de reflexões que, pouco importa se a cardiopatia foi causa ou efeito, o livro emprestado conseguiu convencer-me de que essas duas Leis Divinas: Karma e Reencarnação determinaram que assim vivesse, com direito à prorrogação, para cumprir roteiro evolutivo do que realmente sou.

Obrigado por sua atenção compassiva e boa viagem.

Poderia ter reiniciado a leitura, entretanto aquele desabafo levou-me até chegar a meu destino, São Lourenço, a pensar sobre e a comprometer-me a registrar e compartilhar esse inusitado encontro.

J Coelho
Enviado por J Coelho em 04/07/2017
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