Fernanda e a mortalha do Brasil
É domingo, a tarde está fria e chuvosa, o que é horrível para asmático. Nem consigo dormir e nem me concentro na leitura, nem música me animo a ouvir. Estou chateado e inconformado com a situação do país. Pelejo para me abstrair desse problema, mas não consigo. Felizmente me deram a cópia de uma crônica escrita pela grande atriz e escritora Fernanda Torres, um texto que é uma prova de indignação mas também de resistência, uma espécie de morango à beira do abismo de que falou o saudoso professor Rubem Alves. Sim, há no texto de Fernandinha um pouco de esperança. Vou transcrever o texto dela:
MORTALHA
Fernanda Torres
"Moro em frente à lagoa Rodrigo de Freitas, no caminho do túnel Rebouças, principal via de ligação entre a zona sul, o centro e a zona norte do Rio de Janeiro.
"Aprendi, com a vida, a lidar com o eterno engarrafamento das cercanias do meu prédio. Tracei estratégias para suportá-lo com resignação, e na época em que ainda existia a Árvors-de-natal da Lagoa, cheguei a abandonar o volante e ir a pé, devido à quantidade de curiosos em torno do espelho d'água.
"De janeiro para cá, os congestionamentos desapareceram como por milagre, Dei ara ir e vir com uma rapidez espantosa, comemorei a melhoria do trânsito, até perceber que o fenômeno nada tinha a ver com mobilidade urbana. Era a crise. A crise e a depressão da cidade.
"Os restaurantes e bares estão vazios, os teatros fecharam, as lojas se foram e os hotéis olímpicosacabaram às moscas. É como se estivéssemos vivendo sob um toque de recolher. Minha mãe comentou, outro dia, quesente o Rio envolto numa mortalha.
"Os assaltos, as trocasde tiro quue ecoam como na Síria, os arrastõs continuam, mas a calmaria éassombrosa.
"Não há dinheiro nem plano, não há futuro ou comando. É como estar num transatlântico à deriva, rezando para passar, você nem sabe o quê.
"Pezão abriu mão de governar, declarou estar ciente de que nao resistirá muito mais no cargo. Crivela honra compromissos na África, como pastor, e tem planos para fechar as torneiras da festa pagã do Carnaval.
"No último dilúvio, a comitiva do prefeito colidiu com um carro de um cidadão e passou batida, sem prestar assistência. Crivella, suspeita-se, tinha pressa de chegar em casa, para ficar a salvo das corredeiras de esgotoelixo em que se transformaram as ruas e avenidas sob sua responsabilidade.
"Normal. Não se espera mesmo nada do andar de cima. Não há revolta, não há mais bombas na Primeiro de Março. Resta apenas a apatia, e uma faltade saída de arrepiar.
"Os males que ameaçam o país parecem acontecer antes, e com mais intensidade, nessa vitrine chamada Rio de Janeiro. Carma de ex-capital. O PMDB de Cunha e Cabral levou a medalha de ouro em corrupção, o buraco da Previdência já mostra s dentes por aqui, e afalênciaé palpável.
"Ninguém merece a Alerj, Picciani, ou a oposição de Garotinho. O Rio prima pelo horror, mas os eguns engravatadosde Brasília não eixam nada a dever aos mortos-vivos da Guanabara.
"Michel Temer sofreu bullyng na Noruega, em uma taxa de aversãode 93%, é investigado por formação de quadrilha. Ainda assim, não há grita.
"O medo do colapso da economia, a tentativa de atravessar o lamaçal até 2018 sem fazer marola, o 'Fora Temer' tão colado ao 'Volta Lula', o deserto de candidatos, tudo isso explica, em parte, o marasmo. Mas a paralisia do Rio diz mais.
"Cansamos. Desistimos deles.
"No temporal de 20 de junho, um mergulhador limpou os bueiros da praça da Bandeira por conta própria, enquanto Crivella fugia a caminho de sua casa.
"Não há consenso ou energia que faça a indignação chegar às praças, mas e-mail seguido de 'send', para pressionar os deputados da CCJ a levar a acusação de Janot a plenário, já seria um baita de um esforço cívico.
"Temer é como Pezão. Já foi e sabe. Épreciso impedir que ele estenda a mortalha".
PS: O Rio é o Brasil. Inté.