Seu Raimundo

Descobri em Drauzio Varella um ótimo escritor. Entre muitos fatos interessantes, ele registrou a história de Seu Raimundo no livro “Por um fio”. Vou recontá-la.

Seu Raimundo era um homem conservador. Depois de passar por uma cirurgia, ele aposentou-se na fábrica. Habituado à vida ativa, saiu desesperado atrás de trabalho. Busca infrutífera para homens com mais de cinqüenta anos. Em casa, foi invadido pela tristeza que a sensação de inutilidade provoca em pessoas de temperamento como o dele.

A vida só recuperou a graça quando um amigo lhe ofereceu lugar de apontador de jogo do bicho. Serviço leve, receber apostas e repassá-las no fim do dia para o bicheiro em troca de vinte por cento da renda.

No princípio, seu Raimundo hesitou. Não que o incomodasse a natureza do trabalho, nada tinha contra esse tipo de contravenção; até arriscava um palpite de vez em quando na fábrica. Sua implicância era com o local de recolhimento das apostas: um bar de esquina. Logo ele, que se orgulhava de jamais ter colocado os pés num botequim.

A resistência só foi vencida quando o amigo argumentou que o caráter de um homem não pode depender do local onde ele ganha a vida.

O jogo do bicho proporcionou mudanças na vida econômico-financeira de seu Raimundo: trocou o Fusca por um Chevette, reformou o barraco, comprou baita aparelho de som, substituiu a tv Colorado RQ por uma Sony 29 polegadas, trocou as camisas brancas de algodão por camisas de seda estampada (Claro. Bicheiro que se preze tem que vestir camisas de seda estampada) e ajudou a reformar as casas das filhas.

A serenidade que o equilíbrio financeiro proporcionava, no entanto, encontrou um desses obstáculos difíceis de transpor na vida conjugal: dona Rinalda, esposa de seu Raimundo, era evangélica, temente a Deus e, em dúvida sobre a lisura da nova atividade do marido, foi ouvir a opinião do pastor.

O religioso disse que o jogo era invenção de Satanás, pecado mortal, armadilha criada pelo Senhor das Trevas para roubar da alma humana a ventura de, no porvir, desfrutar as delícias do paraíso. Concluiu dizendo que Deus, em sua infinita bondade, tinha reservado as profundezas do inferno para receber homens como seu Raimundo, atolados no vício.

A mulher quis morrer de infelicidade. De que adiantava ela, serva piedosa, ir para o céu e o companheiro da vida inteira arder no fogo do inferno?

Dona Rinalda tentou tirar o marido da contravenção, mas diante de sua teimosia, resolveu chantageá-lo: fez-se cair doente e, depois de duas semanas acamada, convenceu-o a acompanhá-la em visita ao templo onde o Senhor é a salvação.

Seu Raimundo cedeu às artimanhas da esposa e, homem de palavra, terça-feira à noite,

seguiu-a para uma sessão de descarrego.

Quando chegou a hora dos testemunhos, o palco recebeu uma mulher que abandonara o marido trabalhador por uma vida de luxúria. Descreveu suas noites nas boates, com roupas escandalosas e os homens aos seus pés. O encontro com a igreja, salvou-a afinal e trouxe-a de volta para a família que perdoou os seus pecados e acolheu-a de braços abertos.

A seguir, um ex-usuário de drogas que, em busca da felicidade ilusória, havia destruído a vida dos pais e irmãos. Chegara a perambular feito mendigo e dormido sob as marquises da vida. Estaria morto se Jesus não tivesse operado um milagre em seu espírito.

Logo, surgiu um rapaz delicado que confessou ter sido garoto de programa e disse que

fazia sexo ao vivo em inferninhos gays. Encontrou na igreja a salvação para a sua vida.

O quarto era um alcoólatra regenerado que antes, sob efeito da bebida, batia na mulher e maltratava os filhos. Como os outros, não estaria ali caso Deus não tivesse se materializado na pessoa do pastor para recolhê-lo da sarjeta.

Quando um ex-presidiário, assaltante arrependido, começou o seu testemunho, seu Raimundo levantou-se e saiu.

Dona Rinalda alcançou-o no caminho:

- Por que você veio embora?

- Sou homem de respeito e ali só tem bêbado, viado, ladrão e puta. Só porque recolho jogo do bicho sou obrigado a me misturar com gente que não presta?

e-mail: zepinheiro@ibest.com.br

Aroldo Pinheiro
Enviado por Aroldo Pinheiro em 13/08/2007
Reeditado em 14/08/2007
Código do texto: T605170