O DIA DO ESCRITOR (e do escrevinhador)

Hoje é o dia do escritor.

Como não há um dia do escrevinhador, aproprio-me deste dia, por aproximação.

Curioso notar que na antiguidade, tempo de Roma, “scriptare” significava escrever ou escrevinhar, pois nenhuma diferença de reconhecimento ou respeitabilidade existia entre um escritor ou um escrevinhador, excluindo o fato de que aquele redigia discursos, elaborava teses e tratados ou estudos assemelhados, enquanto este se incumbia dos documentos, mensagens e propagandas, principalmente, mas também emplacava alguns versos ou cantilenas, para uso próprio ou a pedido. O “scriptorium” ou escritório, abrigava a ambos, igualmente, e há relatos de compartilhamento de obras, até mesmo por parte de escritores famosos, como Virgílio, Sêneca e Marco Aurélio, com escrevinhadores desconhecidos, como Kisar, Nemestrino, Seulo, Galésio e outros. Escrever, então, era uma arte, reconhecida até pelos povos mais bárbaros.

Hoje, escrever bem é usar, rapidamente, os dedões, ao digitar no celular; saber escolher o emoji certo, para ilustrar a intenção, aproveitar a dica do corretor ortográfico e abreviar tudo que der, tipo vcs, bjs, omg, lol, sqn e mais uma carrada de micro expressões. Quando eu era garoto, alguns séculos atrás, as abreviações, geralmente, significavam palavrão, como “pqp”.

Nos tempos de colégio, aprendi gramática histórica, latim, grego, li vários clássicos, cujo conteúdo tinha de resumir e apresentar, oralmente, diante da classe, valendo nota de bimestre. Elaborava redações de cinco ou seis páginas, que algumas professoras achavam incompletas, e quando tinha de fazer análise gramatical, endoidecia em cima do papel, para tirar nota cinco.

Poucos anos depois, a redação no vestibular só precisava de vinte linhas; nas aulas de português, a gíria já ocupava o espaço, anteriormente dominado pelas figuras de linguagem; e os livros foram trocados por apostilas, que descarregam na mente dos estudantes o linguajar das ruas e das mídias sociais. Os clássicos, para os jovens, passaram a ser hits musicais das décadas de oitenta ou noventa, do século vinte. De preferência, remixados.

Hoje em dia se encontram escritores a cada dez passos. Topei com um escritor famoso, cujo livro vendeu mais de quatrocentas mil cópias (já estava encaminhando o segundo) num aeroporto. Vôo atrasado, sala VIP, balcão recheado, ficamos conversando e beliscando. Eu ia de suquinho, ele de birinaites. Depois de uns bons minutos e várias doses, bem alegrinho, ele me confidenciou que mal sabia assinar o nome e não tinha terminado o primário (hoje ensino fundamental), mas dava palestras até em faculdades, cobrando uma nota preta. Quis saber sobre seu livro e ele retirou uma unidade da mochila, autografou e me presenteou. O título era bem sugestivo: “NINGUÉM É NÓIS”. Perguntei sobre o tema, ele não entendeu; expliquei que desejava saber o assunto, e ele disse, inocentemente, que tinha tentado ler seu livro, mas não entendeu bulhufas. Segredou-me, ao pé do ouvido, que não tinha a menor ideia do que estava ali escrito. Disse que alguém tinha digitado um monte de estórias como sendo dele.

Ficamos rindo, um pro outro, como bobos, até que chamaram para o embarque e ele, muito solícito, perguntou se eu “também” estava na primeira classe. Separamo-nos, é claro.

Ele se foi, risonho, feliz da vida e recheado de papel comprador.

E eu aqui escrevinhando palavras de montão (e não ganhando nem um tostão).

Mas poucos sabem que o escritor é, via de regra, um sonhador. Aliás, sonhador que se esmera em levar seus leitores a compartilharem seus sonhos.

Pense que, ao viajar através das palavras de um texto qualquer, o primeiro viajante foi o autor, e ele quis compartilhar consigo bons e maus momentos, dores e alegrias, segredos ou episódios vividos, fantasias, mistérios, suspense, epifanias; e suas mãos trabalharam muito, para despejar num veículo adequado, gráfico ou eletrônico, o que em sua mente se agitava, e assim poder disseminar suas aventuras pessoais em mentes alheias.

Viver é preciso; sonhar idem. Ler o sonho de alguém é viver em duas realidades.

E o sonho maior do escritor é ser lembrado pelo leitor.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 25/07/2017
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