O Mundo no ventre

O Mundo no ventre

Há notícia de um homem que vivia para aqueles lados onde o sol costumava nascer, que trazia consigo uma grande tormenta, uma doença. Bem, talvez não fosse bem uma doença dessas que torcem os ossos e mingam as carnes. Era mais uma maleita ou defeito adquirido. Coisa rara.

Diz-se que ele nasceu de seu pai e sua mãe por motivos de amor sincero, daqueles que duram e duram e trocam as voltas à morte e continuam a durar nas pedras da calçada, nos vidros das janelas que os viam passar de mãos dadas nas manhãs de domingo.

Diz-se não haver notícia que tivesse feito aberrações consigo ou com quem cruzasse o seu caminho.

Ninguém sabia a origem ou motivo de tal mal que o tinha em tal estado de sofrimento.

Sabe-se que certo dia foi visitar um médico daqueles que também são doutores e cheiram à distância o que nos vai por dentro, o que corre entre as nossas células e glóbulos, tanto dos brancos como dos vermelhos. Foi visitá-lo em súplica.

Pensa-se que terá dito ao doutor que acordou certo dia com um peso no ventre, um peso de dentro para dentro.

Um peso que o fez sentar-se a custo na borda da cama e que o impedia de se levantar.

Era tal o peso que compreendeu que tinha de tentar descobrir o que se passava.

Passado algumas horas descobriu que tinha engolido o mundo, o mundo inteiro.

Todos os seus hemisférios, meridianos e oceanos, todos os seus ventos e montanhas, todas as pessoas e todos os animais.

Um peso insuportável, impossível de digerir.

Que coisa rara de acontecer, logo a ele, um homem tão comum e sem nada que o pudesse fazer sobressair.

Tinha o mundo inteiro no ventre, coisa nunca vista, mas o que o fazia sofrer mais, mais do que arrotar furacões e expelir terramotos madrugadores, engolir equinócios e cuspir solstícios, era saber que tinha engolido também a ganância dos homens, as injustiças, as consciências.

Tinha engolido a ânsia daqueles que querem a guerra, a euforia podre dos violadores e assassinos, o sangue frio dos homens sem razão.

Dormia com a culpa da humanidade, tomava banho com os rios imundos das cidades, vestia-se com os detritos eternos do fundo dos oceanos, empanturrava-se com os excedentes dos ricos ao almoço e gritava a fome dos pobres ao jantar.

Não conseguia orar porque as palavras sagradas soavam sempre a falso e quando pedia perdão, sempre que se confessava, tinha mais um milhão de pecados não confessados, tinha mais mentiras e intrigas, usurpações e infâmias.

Ás vezes, mas raras vezes, tinha o coração cheio de amizade e amor, solidariedade e esperança.

Que destino tão cruel, que horror maior haveria?

Que cura terá encontrado o senhor doutor para mal tão raro?

Que xarope ou unguentos receitaria para aliviar a dor de um mundo inteiro?

Como trataria as consciências, as angústias de um soldado?

Como curaria a tristeza do coração dos orfãos de guerra?

Que terapia para o ódio, para a raiva que faz o mundo gritar, atacar, humilhar, ofender?

Como trataria as almas e os desvalidos?

Conta-se que este homem continua a carregar este mal, esta condição.

O doutor continua a tentar encontrar a receita, a cura; Obra ingrata

Victor Amorim Guerra