Conta comigo (ou "Stand by me Pt. II")

Conta comigo

Eu tinha 13 anos quando vi, pela primeira vez, um ser humano morto. "Descansando" em um caixão. A criança tinha apenas seis anos – completados dois meses antes do acidente fatal. O caixão, nada mais justo, era branquinho. Seus olhinhos, fechados, mostravam a pálpebra roxeada, em contraste com o tom pálido amarelado de sua pele. A morte parecia dar contorno ao corpo do pobre menino – vítima de um covarde motorista de caminhão, que ao notar uma falha no freio, pulou do veículo, ainda em movimento (numa ladeira!) e tratou de salvar apenas a si mesmo. O caminhão, totalmente desgovernado, chamara a atenção de dois ou três garotos que brincavam na calçada. Um dos ganchos laterais (para amarrar as cordas que seguram as cargas a serem transportadas) acertou a cabeça de K. Levando-o junto com o caminhão, rua abaixo, numa volta mortal, estúpida e atroz. Ao fim da descida à morte, o caminhão só parou após invadir uma casa de esquina, derrubando o muro. Isso ocorreu em março de 1990, em Poá, SP.

A primeira vez que eu vi um ser humano morto. Um garoto – sete anos mais novo que eu. Aquilo me aniquilou! Me partiu por dentro! Me estragou os dias! Tirou minha paz! Eu não conseguiria dormir direito! DIABOS! Aquilo me perturbou por muito tempo! O primeiro corpo sem vida de um ser humano! Deus! Como pode? Como pode?

O assassino continua em liberdade. Rindo de tudo e de todos. É o que eu sei da criatura.

A vítima era meu primo.

Isso me marcou muito. Justamente porque, à mesma época, eu começava a escrever. Esboçava, num diário todo fragmentado, algumas ideias e registrava fatos de meus dias. Foi um duplo início doloroso. Desde então escrevo sobre a vida e a morte, como diria David Mustaine, frontman do Megadeth. Não se trata de Thrash Metal o que eu faço, nada disso. Apenas de textos em prosa e em verso acerca desses dois extremos. O Autor (escritor para alguns) que me tornei tem origem nessa época, quase três décadas atrás. Deus... Não tenho parado de escrever, sabe? Não posso nem pensar nisso. (Dei uma pausa, de 15 semanas e 1 dia, em 1996, após uma decepção amorosa. Fui enganado. Passado para trás. Cinco anos depois, soube por ela mesma, que andava triste, pois tinha perdido seu namorado num acidente. A vida é cheia de surpresas. Escrever sobre esse fenômeno confere um certo poder a nós, sabe? Não um poder do tipo que consiste em mandar e desmandar, mas no poder de comunicar sentimentos, ideias, e saber que eles podem ser compartilhados com outras pessoas, leitores mesmo, pelo mundo afora. O poder de se expressar. Meu último texto, o maior até então, antes dessa pausa de quase quatro meses – muuuuito tempo para quem jamais passava um único dia sem escrever uma única linha! – era intitulado "Saturação". O nome já diz tudo! Pena eu o ter perdido. Pena eu ter jogado fora outros textos. Inclusive os bilhetinhos dela para mim. Sei lá, mas é como se valessem para lembrar-me de uma época [da qual hoje não me agrada muito tentar rememorar], por detalhes que faziam parte de minha vida social. Aquele sol vespertino de junho. Tardes quase frias, beijando-a. Abraçado a ela. Ouvindo sua voz. Três anos mais nova que eu...)

Há inscrições por toda a parte desse túnel a que conhecemos por "vida". Façamos nossa parte. Caminhemos. Registremos, por escrito, nossa passagem por ele. Leiamos bem mais do que escrevemos – quando e se possível. Busquemos não praticarmos nada que nos leve ao arrependimento; difícil coisa essa, não? Sim. E como! Mas cabe a nós fazermos isso. Busquemos a Paz Eterna – elemento tão difícil de encontrar, talvez porque habite o nosso íntimo. O âmago de nosso ser. Er... Construir uma história. "História para contar": gosto da expressão. Parece ser a síntese de uma vida intensa, cheia de altos e baixos. O passado nos espia, Senhoras e Senhores, de lá de baixo. Parece sondar cada passo nosso. Parece que policia nosso caminhar. Nosso andar (aqui, na dupla acepção do termo: sinônimo de caminhar e referência aos andares de um prédio).

N. Goldberg diz que "escrever significa lidar com toda a sua vida". Sim! E como! Quem escreve tem que dar voz aos fantasmas do passado (do presente também...); dar voz ao coração; saber calar-se (para evitar revelar coisas muito pessoais, que não devem interessar a ninguém mais senão a nós mesmos).

Daniel Piza (in memoriam), no (maravilhoso!) artigo "O Ler e o Tempo", recomenda não procurar tempo para ler, mas ler para que o tempo nos encontre. Sábias palavras, muito bem colocadas num texto impecável.

E, para tentar não concluir nada (a gente vai continuar escrevendo. Ora fazendo adições, ora contradizendo; mas sempre escrevivendo, ok?), direi só mais uma coisinha. Quando escrevo, parece que exorcizo alguma coisa ruim que possa estar me incomodando por dentro. Se você entende que escrever pode ser uma igual terapia a ti, faça-o também. Se alguém for ler o que tu escreves, caso tu o permitires, ótimo. Mas não depende de leitores além de ti para ler o que escreves. Afinal de contas, se o fazes, é porque te sentes no direito de redigir. Claro: em toda escrita há uma solidez peculiar a cada ser humano que produz textos. É uma partícula de nossas vidas. Um testemunho de que estivemos aqui neste mundo tão sofrido e cheio de contrastes. Um testemunho de que, malgrado sermos "um nada que ama", como diria Pondé, esse "nada" também sente. E escrevive. Against all odds. For example, take a look at me now.*

NOTA

* À época em que eu comecei a escrever, Phil Collins (metonímia para algumas composições suas) exercia uma inspiração para mim. Em especial "I wish it would rain". O que fiz, ao fim dessa minha crônica, foi citar um trecho de outra canção sua, famosíssima. Regravada por outros. Em minha livre tradução: "Contra todas as possibilidades. Por exemplo, olhe para mim agora."