"Segura o ônibus, por favor!"

Com a atual economia achatando cada vez mais a classe média, nós, pertencentes a essa infeliz realidade, precisamos nos privar de alguns “luxos.” Um deles, de minha parte, foi deixar o carro em casa e ir para a universidade de ônibus. No princípio foi difícil, mas, com o tempo, percebi que as vantagens em pegar ônibus não se limitavam apenas às econômicas. Além de não ter que dirigir no trânsito caótico de Recife, andar de ônibus é um poço de cultura, aventura e até comédia. Vou contar um pouco de minha experiência e também darei algumas dicas para vocês.

Os transportes coletivos de Recife desafiam as leis da física: nele, dois corpos podem ocupar sim o mesmo lugar no espaço. Depois que comecei a usá-los, mudei aquele ditado que diz “...é que nem coração de mãe: sempre cabe mais um”. Agora é “...é que nem o ônibus às 18:00: sempre cabe mais um”.

Não há uma pessoa que não tenha pelo menos uma história para ser contada sobre o que aconteceu num ônibus. Tem Maria que diz que foi assaltada. João dizendo que numa freada voou longe. Luquinhas que encochou uma morena estupenda e por aí vai. Como eu não posso ser diferente, e não tenho uma história assim tão comovente ou sensual para ser usada em novela das 8, conto o que me acontece, e que não desejaria que acontecesse a ninguém.

Não sei se mencionei, mas os coletivos também costumam ser um pouco lerdos na capital de PE. Teve uma vez que estava no ponto, esperando o dito cujo. Nesse dia estava chovendo. Em dias normais um ônibus para Olinda já demora. Agora imagine num dia de chuva. Quando já estava desiludido e olhando para dentro de todos os carros para ver se reconhecia algum rosto, eis que avisto um sinal cinza, meio inclinado para a direita, lá no final do horizonte. Poderia ser ele.

- É o último que espero. Se não o for, vou gastar meu dinheiro todo e vou pegar um táxi! - Pensei

Vagarosamente ele ia crescendo no horizonte. Eu ia me esforçando para ver o número. Consegui ver um “9”. A esperança ia aumentando! Depois vi no outro número, indícios de que poderia ser um “1”. Ele foi se aproximando. Nesse momento tive certeza: era o 910, o famoso número do Rio Doce – Piedade. Finalmente! Logo me posicionei no ponto, a fim de poder entrar primeiro. Quando ele parou, fiquei ali parado por um instante. Acho que estava em estado de choque. Como pode? Creio que estava na dúvida se entraria ou não. Na realidade, estava era pensando em como poderia entrar. Enquanto pensava, várias pessoas subiram na minha frente. Acabei sendo o último a entrar. Mas, naquela situação, não faria muita diferença ser o primeiro ou último. Consegui subir o primeiro degrau. Precisaria subir mais um para o motorista poder fechar a porta. Consegui e fiquei por ali mesmo, escorado na porta. Até me imaginei parecido com um desenho animado quando é arremessado contra um vidro e sua cara fica grudada nele. Bom, pensei que, pelo menos, ninguém entraria mais e o motorista não precisaria mais parar até chegar ao destino. Se parasse, seria para algum passageiro descer. Menos mal.

Porém, para minha surpresa, ele parou no ponto seguinte. O pior é que teria que dar espaço para que a porta do ônibus pudesse abrir. Ninguém na minha frente se manifestava. O motorista me olhando e esperando uma reação para ele poder abrir a porta. O pessoal de fora, querendo entrar. Naquele momento me vi como centro das atenções. Era como se estivesse atrasando todos. A única maneira seria achar espaço ali mesmo onde estava. Então respirei fundo, encolhi a barriga, virei meus pés para os lados, me inclinei um pouco para frente e, finalmente, o motorista pôde abrir a porta. Agora alguém entrar é que seria difícil, mas isso não caberia mais a mim. Quando estava tentando imaginar uma solução, senti aquele empurrão que me fez subir um degrau e quem estava na minha frente subir outro. Dessa maneira, a cada parada, foi se amontoando todo mundo ali na frente. O motorista para passar a marcha tinha que avisar: “Tira o joelho que agora vou passar a terceira!” Assim, fomos seguindo nossa viagem.

Para passar o tempo, a melhor coisa é dormir. Quando você está sentado é fácil. Se tiver do lado da janela, mais fácil ainda, pois é só encostar-se à janela, escutar a canção de ninar promovida pelo barulho do motor (ou de seu MP3) e deixar a baba escorrer. Se você tiver do lado do corredor, também dá para dormir, mas aí você tem que tomar cuidado com “as pescadas” e para não babar na pessoa do lado. E acreditem, já vi gente dormindo até em pé. Aqueles ali têm a manha. Eles seguram no corre-mão de cima, apóiam a cabeça no braço, e assim conseguem cochilar.

Porém, tenho que admitir que meu passa-tempo favorito é escutar a conversa alheia no ônibus. Até para isso tive que desenvolver uma habilidade. Não pense que é fácil escutar conversa num ônibus lotado. É uma mistura de sons: conversas, barulho do motor, buzina, choro de criança... É necessária muita concentração para escutar uma conversa só. E sabe qual o principal assunto dentro de um ônibus freqüentado, em maioria, por estudantes? FALAR MAL DE PROFESSOR. Nove entre dez conversas é falando mal de professores: “Aquele professor de biologia é muito FDP, marcou prova para logo depois do feriado”, “Professor fulano de tal é sacana! é f... colar com ele”. Por aí vai.

Outra distração bacana é quando aparecem os pedintes com suas famosas musiquinhas. As quais não consigo lembrar de nenhuma agora. Mas lembro algumas palavras e frases-chave, que são clássicas. Musiquinha de pedinte que se preze, não pode faltar: “Eu não tenho onde morar”; “Minha mãe está doente”; “O meu pai morreu”; “Eu poderia tá roubando”; “Quero uma ajuda” e “Jesus te abençoe”. Para cantar é simples, basta fazer como se estivesse lendo e acentuar bastante a entonação na sílaba tônica da última palavra de cada frase. Por exemplo: “Eu não tenho onde moRAR.” “Minha mãe está doENte...”. Isso tudo sem contar na forma perfeita e universal deles entrarem em contato conosco: “Booooa tarde senhores e senhoras passageiros” (Não há concordância, eu sei disso). Mas encontram-se, também, fanáticos religiosos falando em fim do mundo, que você precisa salvar sua alma, e logo depois, passam uns folhetinhos com convites para ir à Igreja. Esses não deixam de ser vendedores. Vendem o mais cobiçado de todos os produtos: o famoso cantinho no céu. Cantinho no inferno eles não precisam vender, pois qualquer um pode conhecer o inferno com apenas R$2,45. Para isso, basta pegar um Rio Doce-Piedade, às 18:00, em dia de chuva, com alagamento na Agamenon.

Mas o que me fascina nos coletivos é que eles parecem ser verdadeiros lugares democráticos. A partir do momento em que se entra nele, é como se tivesse entrando num outro mundo. Num mundo onde todas as pessoas são iguais, sejam elas professores ou estudantes, intelectuais ou analfabetos, patys ou hippies, gordos ou magros... Ali, todas estão nas mesmas condições: expostas ao desconforto, ao ridículo, aos alagamentos, aos riscos. Por outro lado, expostas também aos momentos de integração, diversão, cultura... É provável que bem perto de você exista um ônibus nessa situação circulando. Só mudam a origem e o destino, mas todos podem te levar a um mundo de verdadeira democracia! Experimente!