Dia de muito, véspera de nada

— O que significa uma pelota de angu sobre a cabeça de um mourão no meio de uma roça de milho? Não sei! Respondi sem entender se o velho falava sério ou apenas caçoava. Até hoje não sei. Digo que não sei nenhuma das duas coisas: o que significa e se era uma troça. Ora! O que poderia significar?

A imagem de um velho alto e magro é o que ficou de seu porte físico em minha memória. O bigodinho branco e hirsuto também faz parte da reminiscência. E os olhos bondosos, quiçá tivessem um quê fora do comum, talvez os cílios brancos. Sei lá! Por mais que eu puxe pela memória não me vem uma definição segura.

— O que significa uma pelota de angu sobre a cabeça de um mourão no meio de uma roça de milho? Vamos, responda, seu sabidão!

Como eu poderia saber? Se bem que eu queria muito poder dar-lhe uma resposta que o satisfizesse. Gostava dele. Para um garoto de dez anos a atenção de um adulto naquele tempo tinha lá sua importância. Não que os adultos não fossem atenciosos com as crianças. O chinelo das mamães e as correias dos papais eram testemunhas fidedignas do cuidado dos mais velhos para com as novas gerações. Mas a daquele velho para comigo era mais do que uma simples atenção. Pode o termo deferência ser mais adequado aqui. Ele conversava comigo, pedia por gentileza, dizia muito obrigado. Conversava assuntos sérios, falava de coisas banais. Pensando nessas coisas ocorre-me uma charge que vi nalguma revista muito antiga, a figura de um menino e um velho, a criança dizendo: “estou triste por não poder fazer o que os adultos fazem” e o ancião respondia: “eu também”. Mas ele podia. Ainda era um homem ativo. Como a cidade ainda não tivesse uma agencia bancária ele fazia a intermediação entre os clientes daqui, geralmente comerciantes e industriais, e o banco em Pitangui. Ele recolhia os “malotes” pela manhã, tomava o ônibus para a cidade vizinha, efetuava as operações encomendadas, retornava à tarde, percorria a clientela devolvendo os “malotes” e ia dar uma relaxada no Bar da Casa Velha onde eu trabalhava. Contava-me ocorrências do seu dia e acolhia com visível satisfação os meus ingênuos comentários. Chamava-se Agenor e sua amizade muito me orgulhava. Há hoje uma rua com o seu nome.

— O que significa uma pelota de angu sobre a cabeça de um mourão no meio de uma roça de milho? Não sabe?

Um evento aparentemente sem qualquer ligação me recordou aquela conversa há muito esquecida. No sábado passado, numa roda de prosa e viola na casa de um amigo, um dos presentes que se diz meu leitor, donde apreendeu meu gosto pelos ditos populares, citou um para mim: “dia de muito, véspera de nada”, que carrega de certo modo o sentido subjacente daquela engrolada do velho Agenor.

— Ora, menino! É só pensar um pouco. Significa fartura.

O fato é que na época eu pensei e pensei e não alcancei o significado daquela conversa. Agora refletindo sobre o apotegma proferido pelo meu amigo leitor ocorre-me a efemeridade daquela abastança tão bem retratada pelo velho amigo da minha infância. Pois é! Dia de muito, véspera de nada.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 21/08/2017
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