Quando a pobreza não está no pobre

Valda era vista por todos da sua rua como uma mulher de pouca sorte. Não sabia ler, tinha uma vida medíocre. Desconsiderada por todos que a conheciam, rejeitada pelos seus irmãos e irmãs que se sentiam superiores por terem uma casa melhor, uns pedacinhos de terra ou algumas cabeças de gado. Era casada com um homem bem mais velho. Um homem castigado pelo tempo, não tinha forças sequer para andar, era bem adoentado. Os dois tinham três filhos. Nicolau de 26 anos, alcoólatra, anestesiado, nem se preocupava mais se era dia ou noite. Não ajudava nem atrapalhava. Encostada a Nicolau tinha Vanda, moça de 20 anos, muito tímida, mal falava com as pessoas, e quando falava, não tinha coragem de olhar nos olhos das pessoas. Uns achavam que ela era antipática, mal educada, outros, porém, a achavam sem graça. Trabalhava em casa de família para poder ajudar a sua.

Moça muito bonita, mas não era percebida, tinha a fama de ingênua, matuta, de vez em quando arrancava alguns sorrisos de suas primas quando passava, pois a achavam desleixada ou muito engraçada por suas vestes surradas e jeito estranho de andar.

As suas primas moravam numa rua depois da sua, mas elas não gostavam de sua presença, nem faziam questão, só quando precisavam de sua ajuda para arrumar a casa. Lívia era a caçula de 12 anos, tinha cabelos grandes, embaraçados, dava muito trabalho para pentear, não se preocupava com essas coisas. Só tomava banho e lavava os cabelos quando sua mãe insistia, brigava muito, muitas crianças não se aproximavam dela, era um bichinho estranho da rua, tinha a missão de ajudar a mãe na lavagem de roupas para se sustentarem.

Todos os dias era a mesma coisa: Nicolau saía pelas ruas cedinho para tomar cachaça, e nas rodas dos bêbados a sua presença era garantida; Vanda pegava no batente assim que o sol raiava, Lívia ia para escola; seu Norberto colocava a cadeira na calçada para receber o sol da manhã e pensar na vida. Valda vai lavar as roupas de suas clientes, metade delas, eram vizinhas que pagavam tão pouco que mal dava para uma refeição, mas Valda não reclamava, fazia tudo o que podia para garantir no final do dia mais um pouco de alimento para a noite e o próximo dia. Dos poucos reais que ganhava das trouxas de roupa, geralmente, comprava pães, 2 pacotes de fubá, meia dúzia de ovos, 1 quilo de açúcar. A janta estava garantida. O café da manhã era composto pelo que sobrava da noite anterior. Outro dia comprava feijão, arroz, alguns legumes.

Assim eram os dias daquela família que pensava estar tudo bem o tempo todo. Não se lamentavam. Acostumados com o olhar de rejeição de seus familiares que nunca os visitaram, achavam natural não se misturar, acreditavam que a vida era assim mesmo. Deus permitia tudo isso, nesse caso, não tinham o que fazer, nem razão para reclamar. Dia e noite programados na sua rotina. Nicolau, chegava muito tarde, às vezes passava da meia noite, nem jantava mais, nem tinha forças para comer, dormia sujo mesmo. Para ele, a vida somente passava, mas dela nada via, nada fazia, sequer existia.

Mais uma semana, mais um mês, mais um ano. Datas comemorativas para esta família não tinham lá seus grandes significados. Vanda via as datas através dos caprichos nas casas que trabalhava, e quando recebia um agrado da sua patroa, geralmente um pouco de comidas de festa, trazia cheia de alegria para casa garantindo que a janta ou o almoço do outro dia fosse mais caprichado.

Reuniam-se ao redor da mesa aos domingos e dia de festa sentindo a alegria de partilhar juntos a vida. A cadeira vazia esperava sem sucesso por Nicolau, mas sabiam que ali mesmo a paz e o sossego, apesar de tudo, era o seu bem mais precioso. Para quem olhava de fora, jamais compreendeu quem era de fato essa família. Os olhares lançavam efeito de invisibilidade, de vida sem sorte. Pouco ou nada sabiam o que realmente acontecia lá dentro.