RECORDAÇÕES

Não tenho saudade de certas faixas etárias, mas dos bons momentos nelas vividos. Se vivesse mais vinte anos, sentiria também saudade de muitos momentos que hoje desfruto. Há momentos desagradáveis vividos na infância e na juventude, nem tudo são flores. A gente sente falta de situações muito felizes, como num certo Natal com os pais e irmãos, de um passeio livre de bicicleta numa estrada de chão batido no interior da cidade pequena, em manhã luminosa e fresca. A gente não se esquece dos momentos empolgantes com a primeira namorada, de uma viagem muito desejada ou do calor da cama macia e aconchegante na casa dos avós, do nascimento dos filhos e netos. A gente não esquece nem do alívio do estudo formal e das obrigações inerentes. E assim vai, com 6, 10, 15 ou 20, 30 anos ou bem mais. Meus melhores momentos foram nas mais diversas faixas de idade. Aliás, continuam mesmo nos acontecimentos mais banais de hoje. Se fosse possível editar um videoclipe existencial desde os primeiros instantes, era só escolher a música de fundo apropriada a cada flash de felicidade e teríamos um espetáculo transbordante. E, para os tempos da alta maturidade, a música não seria necessariamente uma milonga chorosa e mansa. O que cultivamos na memória é realidade virtual, alternativa, com ritmos abundantes. Aliás, memória é tudo: como a vida perde sentido e brilho quando ela se debilita! Boa parte de minha motivação literária prende-se à necessidade, válida ou não, de registrar acontecimentos e fatos que tendem a dissipar-se ou a restarem eventualmente distorcidos no amanhã. Talvez seja assim que se construa a história, sem que nossa breve passagem caia no absoluto esquecimento, em poucos anos. Mas, para contemplar o passado, não se pode esquecer que é preciso bem construí-lo. Não existe história daquilo que não foi feito ou daquilo que não mereça recordação.