UM BAÚ DE LIVROS

MEUS TIPOS INESQUECÍVEIS - DONA MARIA




As vezes vejo-me pisando o assoalho de tábuas largas,lavado com sabão de cinza,daquêle casarão de madeira que aparentava haver jamais recebido uma pintura.
As paredes,enegrecidas pelo tempo,conferiam-lhe um ar de abandono,um quê de mistério.
Encaixado ao vértice da cumeeira,como se fôra uma verruga gigantesca,o enxu de vespas era o único a conhecer os segredos de sótão aprisionados atrás de janelas permanentemente fechadas.
Um pouco abaixo,esquivando-se entre pessegueiros,as demais janelas davam para a estradinha lamaçenta traçando uma linha divisória entre aquela e a nossa casa.
Era numa delas que dona Maria surgia com frequência.
O rosto rechonchudo e de poucas rugas,apesar da idade,bochechas rosadas semelhantes à um bebê,quebrava-se contra a vidraça e os olhos miúdos de um azul turquesa impressionante ,vasculhavam a linha do horizonte como a buscar respostas para suas divagações.
Eu conhecia muito bem aquela casa.(Era moradia de um amigo de infância)
Fecho os olhos e ainda diviso na memória, a mesinha num dos cantos da sala com a famosa "gaveta da troca".
Recheada de quinquilharias ,era dela que Jaci,neto de dona Maria,retirava aparatos negociados com os meninos da rua do Fomento sempre com aviltantes margens de lucros à seu favor.Coisas do sangue árabe que trazia nas veias.Um guarda louças com toalhinhas de crochê,potes de biscoitos e...O relógio despertador!
Fruto da modernidade da época, ostentava-se com aquele marcador representado por um jogador de futebol .A perna em contínuo movimento era o ponteiro tentando , num esforço massacrante ,chutar a bola à sua frente.(Cada tentativa de chute equivalia a um segundo).
Dona Maria era uma simpatia ! Meiga,educada , inteligente...
De seus lábios fluía um português corretíssimo.Tinha em "Fiel",um vira-latas de cor preta,porte avantajado,seu companheiro inseparável.Estirado na varanda ,o cachorro consumia-se em lerdez enquanto dona Maria devorava romances no embalo de uma cadeira de balanço. Serenidade lhe era marca registrada.Nada a irritava,nem mesmo as provocações de sua nora , creditadas à  um certo  distúrbio nervoso que lhe acometia,jamais foram revidadas.Ao contrário;a ançiã não cedia  espaço, apenas saía de mansinho arrastando chinelos , cantarolando em tom muito suave:

"Cidade maravilhosa!...Cheia de encantos mil!..."
[Apaixonados , Seo Carlos, um caixeiro viajante de origem libaneza e Dona  Maria encontraram-se no Rio de Janeiro,sua terra natal. O amor selara a união nas paragens verdejantes e longínquas do Sul, onde formaram uma grande e harmoniosa família.]
Era uma tarde de muita chuva .Diferente de seu jeito de ser,dona Maria mostrava-se muito falante. Assuntos ,os mais variados ,vinham-lhe à memória.Sentados num banco de madeira ,meu amigo e eu,passamos a ouvi-la em narrativas interessantíssimas,enquanto as águas benziam telhados .
Nos falava de tulipas na Holanda, dum trem desgovernado na Alemanha, das cataratas do Niágara e muito, muito mais...Discorria com segurança e conhecimento de quem realmente percorrera aquêles lugares.
Só depois confidenciou-nos a origem de seus relatos."O meu mundo está naquêle baú" apontando para um caixote ao lado da porta de seu quarto.Ao abri-lo deparamo-nos com uma infinidade de livros, fotos, recortes de jornais e as famosas revistas Seleções de Riders Digest que folheáva-mos com avidez, enquanto em voz pausada ela nos lia páginas inteiras de livros prediletos."Tenho outros tantos guardados no sótão".Estão lacrados num grande caixote de madeira parecido com êste. Palavras proferidas com indisfarçável brilho no olhar.
Então,sentados naquela sala onde o assoalho de tábuas largas era tão areado quanto o tampo da mesinha de troca de Jaci , e o silêncio quebrava-se em miudinho no esforço do jogador e sua incansável tentativa de chutar os segundos do relógio,dona Maria nos conduziu pelo mundo fascinante dos livros,das leituras e das fantasias que as linhas promovem ao imaginário.
Algum tempo depois ela empreendera a grande viagem.Nossa família mudou-se para um novo endereço e o casarão "da rua dos Turcos" fora demolido .
Jamais tive notícias do que fizeram com os seus "Baús de livros".
Por vezes retomo aquele caminho, hoje tão mudado, e mentalmente vou reconstruíndo o cenário.
Em minhas divagações brotam ,amareladas pela sépia do tempo, as janelas esquivando-se por trás dos pessegueiros e o rosto rechonchudo de dona Maria vasculhando o horizonte...

Joel Gomes Teixeira