NÃO MORO MAIS NAQUELA RUA

Outro dia, porém, passei por lá. Qual não foi a minha surpresa ao ver um riscado amarelo, meio desbotado, no meio da rua. Quadrados lado a lado para um jogo de rua muito popular e comum. Lá, defronte à casa que habitei. Não pude deixar de parar o carro e descer. A vizinha saiu para olhar. Ainda era a mesma senhora, que muitos anos atrás, nos fez cobrir aquela tinta. Na ocasião, meus filhos aliados aos amigos, ainda pequenos, mendigaram um resto de esmalte amarelo em uma obra próxima e desenharam a sua tarde de domingo no asfalto da rua. Nada mais saudável. A nossa mal amada vizinha, por outro lado, entendeu estarem as crianças a sujar a rua e protestou. A brincadeira não pode prosseguir e a “arte” teve que ser coberta. Novamente por socorro da construção das proximidades, uma providencial nata grossa de cimento escondeu a infância. Nada como um ano após o outro, um pouco de chuva e outro tanto de carros passados, para que a tinta amarela se revelasse. A infância das crianças já foi longe e eles talvez nem lembrem mais daquela tarde, mas é certo que a senhora que ali mora voltou a ter com o que se preocupar.

Passamos pelos lugares e deixamos marcas. Algumas são visíveis para qualquer um, já outras parecem ter sido feitas com tinta invisível das caixas de mágicas para crianças. Daquelas que ensinavam a fazer “sangue de diabo” e a tal tinta, em que se revelava o escrito, à base de limão, no calor de uma lâmpada.

Acredito que estas marcas são obras do inconsciente, de modo que um dia possamos encontrar o caminho de volta. Talvez para correção de rumos, talvez para ruminar a vida ou, ainda, rever os amigos. Alimentar a alma, alimentar a poesia a procura da essência, do resumo. São pequenos laços de fita nos dedos a lembrar-nos de nós mesmos.

Lembrança útil e necessária no caminhar da curta, mal aparelhada, anacrônica e, por vezes, contraditória existência. Mas, como disse, não moro mais naquela rua. Habito outras terras, outras gentes, na combinação feliz e equilibrada de um presente, colorido pelo passado, mas vidente.

Ocirema Solrac
Enviado por Ocirema Solrac em 17/08/2007
Reeditado em 07/05/2010
Código do texto: T611486
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