Estilística

_ Enquanto escrevo, Vidabá vem se espi¬char ao meu lado; não sei se para me fazer companhia, defender o meu reduto literário ou – e o mais provável – matar-me de inveja da sua boa vida de cão. Este mundo está mesmo mudado; "vida de cão" hoje em dia é símbolo de paz e tranquilidade; o dono é que se lasque!

Até o meu escrever, outrora tão displicente, tão à vontade, tão corriqueiro e romântico tornou-se um martírio; me dá uma gastura no peito e remoe as minhas fracas células cinzentas. Não só porque com a vida embaralhada, atribulada, amedrontada, espezinhada (e bota adjetivos nisso!) não se brinca, como também eu morro de medo dos críticos literários. Ai céus! Cadê meu dicionário, minha gramática, minhas regras de pontuação e ortografia? Além disso eu não estou preparada para ter o meu cérebro e meus sentimentos dissecados, nem tão pouco a minha parca filosofia; se dizem que o meu texto é circular ou retilíneo, horizontal, já os meus olhos entram em círculos, minha testa se enruga, o maxilar inferior pende e eu tenho vontade de chorar, retorcendo as mãos e implorar: por favor, a culpa não é minha! Eu não quis dizer isto e nem sei mesmo se quis dizer alguma coisa!

— Ah, dizem ameaçadores, tua obra está inacabada, mutilada, falta-lhe o dizer, o fazer caprichado; está na mídia dos desprezíveis!

Tremo, suo frio e retruco humildemente, plagiando Moravia: "Escrevo simplesmente para divertir-me..."

Os olhos algozes me fitam do alto: — A tua ineficácia comunicativa é péssimo exemplo, degrada a classe porque você perde o domínio estilístico!

— Estilístico? — balbucio, ainda vesga, de olhar angustiado e pianjente.

— Sim, mistura tudo, desde o ponto de vista estético à finalidade da tua obra!

— Obra? Que obra? O que você pode tirar da minha "obra"? O que pode fazer ou concluir dela?

— Que tu a estás usando como um trampolim!

— Oh céus, oh céus! — choro e me retorço abarcando a cabeça com os braços — se eu tivesse que pensar para quem estava escrevendo e para quê estava escrevendo eu jamais pegaria no lápis. Eu apenas gosto de escrever, acho bom escrever, mandar um alô descontraído e, no máximo, dizer que aqui no sítio também está chovendo. Não posso pensar na necessidade neurótica de criar algo transcendental e filosófico: já existem tantos! Por que este trabalho insano de esmiuçar minhas fracas aptidões literárias? E você viu bem o que fez, além de bagunçar o meu coreto e chamar-me trampolineira? Perdi uma crónica toda me defendendo — do quê nem sei! Não entendo seus termos! — E nem prestei atenção quando a chuva parou e o Vidabá foi dar sua voltinha.

Agora deixa-me em paz; quero ver as aves caçando no ar os siriris — e que façam bom trabalho se não, é cupim na certa! — quero ver os patos sacudindo as asas e ouvir o grito festivo do bem-te-vi — ainda usam-se ífens ou escreve-se bentevi?.

Aproveito o espaço para dar um alô à comadre Maria.

Christina Cabral
Enviado por Christina Cabral em 17/08/2007
Código do texto: T611876