Debaixo do chuveiro

Ao longo do tempo vamos criando e cultivando manias que vão se tornando quase que irrevogáveis. As minhas estão todas relacionadas ao esquecimento de tudo o que me estressa ou aborrece. Por exemplo, gosto muito de almoçar em casa com os pés descalços e apoiados em alguma coisa, enquanto assisto a um bom programa esportivo. Quando tenho dias demasiadamente frustrantes e cansativos, gosto de passar no mercado (se tiver dinheiro) e comprar um pequeno pote de sorvete, e degustá-lo vendo algo que me faça rir. Há algum tempo, descobri o basquete, e o quão relaxante ele é quando se está exausto.

Todas essas manias descritas foram sendo adotadas por mim com o passar dos anos, mas há uma que me acompanha desde os meus dias mais infantes: a mania de pensar na vida debaixo do chuveiro. Meu chuveiro tem sido meu psicólogo antes mesmo que eu descobrisse o que é psicologia. Ele jamais foi à faculdade, e duvido muito que tenha lido Freud, mas certamente, ele é o melhor terapeuta que conheci nesta problemática vida, (melhor até que a sempre atenciosa janela do ônibus).

É bom ressaltar que em muitas vezes não vou sair a lugar algum, não estou fedendo e nem sujo, mas mesmo assim tomo um bom banho para poder pensar na vida. É debaixo do chuveiro, com a água caindo no corpo, longe dos meus óculos, enxergando tudo embaçado que consigo me concentrar na vida que vivo. É debaixo do chuveiro que me encorajo todos os dias antes de enfrentar os ônibus lotados. É com a água quente lavando minhas costas que relembro tudo que estudei antes das provas. É no consultório do chuveiro que penso sempre em arrumar um emprego melhor, para conseguir mais dinheiro, afinal, a conta de luz tem ficado muito cara ultimamente. Foi debaixo dele que notei que a maioria dos meus amigos já estava se casando, e os que não estavam casando estavam noivando, e os que não estavam noivando estavam namorando, e enquanto eles casavam, noivavam e namoravam, eu permanecia atado a mim mesmo. Foi em meio ao vapor que enchia o banheiro que tomei coragem para chamá-la para sair e que criei o mais irrecusável dos convites. Foi sentado embaixo do chuveiro que minhas frias lágrimas uniram-se às gotas quentes do choro do meu velho terapeuta, que me consolava depois dela ter dito que não queria mais me ver e ter recusado meu irrecusável convite. Somente meu chuveiro sabe de quando converso... Isto é, discuto... Ou melhor, digladio com o bom Deus, reclamando do passado, do presente e duvidando sobre o futuro. É debaixo do chuveiro que me arrependo... quer dizer, sinto remorso, pois logo depois já volto a questionar a bondosa bondade do Criador. Tem sido debaixo do chuveiro que penso nas pessoas miseráveis que gastam água excessivamente, e privarão meus filhos e os filhos dos meus filhos do privilégio de se demorarem no banho.

Hoje, a casa estava vazia. Só meu chuveiro ouvia as notas desafinadas que eu cantava debaixo dele. Depois, tentei colocar em ordem a minha desordenada vida. Fiz o de sempre, pensei, me indaguei, me questionei, refleti. Até que ouvi o barulho do disjuntor se desarmando, notei as luzes se apagando e percebi a água ficando mais fria. Talvez meu psicólogo tenha se enjoado de mim e não quisesse ouvir mais nada. Mas compreendo-o, pois há dias em que nossa resistência esquenta muito… e afinal, estes anos todos os meus banhos foram monólogos sucessivos. Naquele instante me sentei e em meio a toda aquela escuridão, e ouvi as frias queixas do meu amigo.