O Bochorno

De corpo presente e o pensamento alhures, levo mecanicamente o copo à boca, deleito-me mais com a temperatura que com o sabor da bebida, até a sensibilidade gustativa parece comprometida por esse estado de alma, não sei até que ponto negativo. A noite é muito quente e as pessoas reclamam em tom de protesto. Rio-me pensando que talvez fosse o caso de se organizar uma passeata já que isso está tão em voga. Promovamos uma paralização contra o calor. Alguém terá que assumir a responsabilidade por esse aumento gradativo da temperatura que se verifica a cada ano. Penso no longevo amigo Nivaldo, o Ni, a quem fiz há algum tempo o automático comentário sobre o tempo e o aumento da temperatura, ao que ele respondeu com sua a sua admirável franqueza:

— Ora! Tudo isso é uma grande bobagem. Há muito que já passei dos oitenta e os verões da minha mocidade não eram em nada diferentes. Vi os veranicos de janeiro torrarem as plantações nos idos do entre guerras, lá pela década de 1930 e lhe digo que nada é diferente hoje. As pessoas é que são mais chatas. Não se contentam com às benesses que lhes são oferecidas abundantemente, se a temperatura estivesse baixa estariam reclamando do frio, se chovesse reclamariam da chuva. Aprecio todos esses estados da natureza e me divirto com a rabugice das pessoas.

Como confrontar meus precários conhecimentos teóricos com sua sapiência adquirida no decorrer de oito décadas de vida, experimentada na prática? Naquele dia conversamos longamente sobre o caminhar da Humanidade e saí de sua presença um pouco melhorado, aliás, sempre respeitei os anciãos como os verdadeiros mestres que são, o que tem me valido como inesgotável fonte de aprendizado.

Agora enquanto aprecio meu suco de laranja no avarandado da lanchonete a olhar as pessoas em trajes leves, no lusco-fusco, a se abanarem pela calçada, reflito com pesar que só aprendemos a viver na medida em que vai se esgotando nosso tempo de estadia por aqui. Vontade de dizer isso às pessoas enquanto elas estão jovens, enquanto ainda definem o seu trajeto pelos incertos caminhos que terão de trilhar. Ocorre-me a lembrança de um pensamento de Spencer Johnson que um amigo citou esta tarde: “A dor é apenas a diferença entre o que é e o que eu quero que seja”.

De repente a sensação térmica que ainda há pouco me eriçava a epiderme já não me aborrece. Alguma entidade galhofeira, imaginária, ainda tenta convencer o meu espírito susceptível, de que esse bem-estar deve-se apenas ao efeito do refresco que acabo de ingerir, de fato no fundo do copo sobejaram, no meio da espuma amarela, algumas pedrinhas de gelo, mas sei que a causa vai além dessa coisa física. Convenço-me de que a mente mantém a sua soberania e que estar me sentindo bem ou mal é apenas uma questão de pensamento.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 25/09/2017
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