Alfabetizando Fafá

Ela veio com minha mãe, de nossa cidade natal, para trabalhar lá em casa. Deveria estar com a idade de 13, 14 anos. Era uma morena graciosa e risonha. Gostava de usar bermudas e saias curtinhas. Cabelos levemente cacheados. Altura e peso compatíveis com os das garotas de sua idade. Disse que se chamava Fátima e logo demos a ela apelido de Fafá.

Naquele tempo não tinha essa luta contra o trabalho de crianças e adolescentes que existe hoje. Também ela não podia ser considerada empregada doméstica, mas uma auxiliar, já que mamãe ajudava na cozinha e nós, filhas mulheres, na arrumação da casa. Sempre tivemos respeito pelas pessoas que trabalharam lá em casa sem discriminá-las por terem uma situação inferior. Era a primeira vez que teríamos alguém ajudando nos afazeres domésticos depois de Ana, a quem consideramos irmã de criação, ter morado durante 30 (trinta) anos e saído para casar. Fafá chegou sem saber ler e escrever. Eu sempre me interessei pelo nível de estudos das pessoas querendo logo saber qual a escolaridade, indicando escola, dizendo ser o aprendizado, a quem não tinha instrução, um caminho para ser alguém na vida. Isso se deve ao fato de eu ter aprendido a ler e escrever precocemente. Sempre com um livro na mão, gostava de me mostrar e lia em voz alta os textos, os poemas e as poesias. Embora tímida, era escolhida pelos professores, para fazer leitura em sala de aula e declamar em datas comemorativas. Fafá demonstrava certa ingenuidade e se admirava de tudo que via aqui na capital: os carros, as luzes de gás neon, as vitrines das lojas, o asfalto, o vai e vem das pessoas, tudo. Quase não acreditou quando me viu dirigindo! Uma mulher dirigindo, para ela, era o máximo! Chique!

Comprei-lhe um biquíni e fomos à praia. A sua reação foi de perplexidade, emoção e surpresa ao ver aquela imensidão de areia, e, quando sentiu o gosto salgado da água em sua boca disse não acreditar que aquele mundo de água não servia para tomar banho, cozinhar, lavar a louça, a roupa, a casa, ficando decepcionada e pensativa para logo em seguida arregalar os olhos maravilhada com o que ia descobrindo.

Nesse tempo eu já tinha concluído curso superior, estava formada, trabalhando. Ela foi logo me chamando de doutora. Disse-lhe que me chamasse de dona e meu nome em seguida. Quando falava ao telefone com sua mãe, dizia: a filha da dona da casa é “devogada” e está me ensinando a ler e escrever. Aqui tudo era lindo, maravilhoso, estava sendo bem tratada, tinha ido ao centro da cidade e à praia. Fafá, sempre de bom humor, nos fazia rir com suas tiradas repentinas. Demonstrava dificuldade com a pronúncia das palavras e compreensão de frases compostas. Resolvi que iria matriculá-la em uma escola, porém, antes disto, lhe faria conhecer as letras do nosso alfabeto. Chegando em casa no final da tarde, mesmo cansada, sentava-me com ela à mesa da sala de jantar com lápis e papel na mão, ensinei-lhe as vogais e depois as consoantes.

Com certa dificuldade na junção das letras ia vagarosamente formando as palavras, soletrando para depois pronunciá-las em voz alta, e uma alegria sem tamanho invadia sua alma quando lhe dizia que estava certa era daquele jeito mesmo. Aos poucos, Fafá ia aprendendo e desenrolando a língua. Numa dessas noites, me apresentou um jornal com a palavra paralelepípedo e disse que nunca, jamais aprenderia a pronunciar uma palavra daquele tamanho. Naquela época as letras Y, K e W ainda não integravam oficialmente o nosso alfabeto. Para não complicar, decidi nem comentar sobre a existência dessas três letrinhas. Fui ensinando e ela foi aprendendo. Cada dia se sentindo mais feliz, surpresa, maravilhada com as palavras e com a leitura que conseguia fazer. Eu também me sentia feliz em proporcionar a ela essa descoberta. Não cansava de me agradecer. Lembro-me que ao ver a grafia da palavra "William", logo perguntou sobre esse “EME” com as pernas pra cima. A senhora não me ensinou sobre ele, que letra é essa? Eu não pude deixar de dar boas gargalhadas e assim passo a lhe explicar sobre as três letrinhas estrangeiras.

Fiz com Fafá um “tour” pela cidade. Era uma maneira de eu também rever alguns pontos onde quase ou há muito tempo não andava. Sua alegria, ingenuidade e descontração me faziam sentir leve e tudo isso me fazia bem.

Foi chegada a vez do aeroporto e pude ver seus olhos brilhando diante de um avião de grande porte. Disse que lá no interior, quando eles passavam no céu, era muito alto e mais parecia um passarinho pequeno, onde as crianças gritavam: “bate as asas avião, bate as asas” e agora ela estava ali, diante de tão grandiosa invenção, mais uma vez incrédula querendo saber como é que um troço daquele podia voar tão alto, cheio de gente e de bagagem e não cair. Uma coisa enorme e pesada como aquela?! Não deixou de perceber os passageiros, alguns muito chiques, as malas com rodinhas deslizando sobre o piso. Disse que morreria do coração se um dia tivesse que viajar num transporte daquele e quis logo saber sobre mim, se eu já tinha viajado, quando e como foi e se era possível entrar apenas para conhecer por dentro. Eu lhe falei da grande expectativa, medo e emoção que senti ao realizar minha primeira e inesquecível viagem de avião e que entrar não seria possível.

Estava em período de férias e, em vez de viajar, resolvi ficar na cidade e proporcionar a Fafá essa maravilhosa descoberta. Para mim, também, era uma redescoberta de muitas coisas dessa cidade, de Fortaleza,que no dia a dia eu não notava ou dava a devida atenção.

Eu ficava dias, meses sem ir ao centro da cidade. A entrada em um banco foi motivo de surpresa e admiração, e ao ver a porta se abrindo sozinha ao chegarmos perto foi logo dizendo: como é que ela pode ver e sentir que nós estamos querendo entrar? Será que ela tem um olho escondido? Só pode ter, senão como ia saber que a gente ia entrar naquele momento?

Em uma grande loja de variedades foi chegado o momento de andar de escada rolante. Não ligou ao aviso que lhe dei para que ficássemos paradas em um degrau e a escada nos levaria ao andar superior, ela insistia em subir se distanciando de mim. Eu, atenta, temendo como seria a sua chegada sozinha, tive que também subir, já que ela não desceu.

Frequentando a escola, cada dia melhorava na escrita e leitura, queria ler em voz alta todos os nomes que iam surgindo na sua frente: lojas, bancos, boutiques, farmácias, perfumarias, lanchonetes com seus cardápios, em sua maioria, com os nomes dos lanches em inglês os quais achou muito estranho e dificílimo de entender. Pronunciou di-fi-cí-li-mo, soletrando compassadamente.

Em outro dia, à tarde, fomos ao cinema, quanta admiração, emoção e deslumbramento com o belíssimo lustre do cine São Luís, as escadarias, as cadeiras, as paredes. Tudo era encantamento! O filme, cujo nome não lembro, tinha a imagem de um trem soltando fumaça, diante do que Fafá reagiu tampando o nariz dizendo que poderia ficar gripada se engolisse aquilo.

Cada passeio era também, uma nova descoberta para mim. Quando aqui cheguei, minha admiração, emoção e deslumbramento eram parecidos. Tudo era novo, diferente, moderno. Lembro-me de uma amiga, sabendo que eu vinha passar férias aqui, foi à minha casa levando dois vidrinhos me pedindo para portar em cada um, água e areia do mar.

Ao lhe falar sobre a beleza do centro da cidade à noite, com as vitrines das lojas iluminadas e os nomes coloridos com luzes de gás neon, ela pulando de alegria, foi logo querendo saber o que era gás neon, me fazendo jurar que iria com ela nesse horário para ver essa lindeza. E uma noite, lá vamos nós, à Praça do Ferreira, tranquila, ainda, servindo como lugar de diversão e lazer aos moradores e visitantes desta urbe.

No supermercado, empurrando o carrinho, perguntava como o dono confiava nessa gente que ficava tirando os produtos das pra-te-lei-ras, para pagar somente depois? (ela tinha aprendido a pronunciar essa palavra, dizendo que achava tão difícil quanto pa-ra-le-le-píííí-pe-do). E se alguém colocasse um produto pequeno no bolso ou na bolsa e saísse sem pagar? Fafá às vezes, se exibia, mostrando que já sabia pronunciar palavras difíceis.

Adorava as aulas na escola e não cansava de me agradecer por essa oportunidade de aprender e que me seria grata pelo resto da vida. Quando voltasse ao interior as amigas e irmãos iriam ter inveja dela, sabendo ler e escrever assim em pouco tempo. Eu, para deixá-la mais confiante, dizia que ela era inteligente, interessada, sendo isso, um fator importante. Que continuasse com essa vontade e determinação em tudo que fizesse na vida e retornando ao interior, ela poderia falar sobre essa felicidade, incentivando outras pessoas a frequentarem a escola.

Fafá ficou uns dois anos lá em casa. Nem lembro o motivo de sua saída. Voltou para o interior. Com o passar do tempo perdemos o contato e ficamos sem saber qualquer notícia de seu paradeiro. O meu afastamento da cidade onde nasci, com longos períodos de ausência, nos distanciou tanto que hoje não tenho qualquer referência familiar dela para que pudesse fazer uma busca.

Quando vivia conosco não havia celular nem computador. Diante do avanço tecnológico de hoje, com a rapidez na comunicação, fico imaginando a surpresa e admiração de Fafá ao se deparar com um carro que avisa quando um de seus ocupantes está sem o cinto de segurança, de longe, vidros baixam e portas se abrem, bastando apenas acionar a chave. As redes sociais, as quais a comunicação acontece cada dia mais veloz, onde as pessoas se falam e se vêem ao mesmo tempo. Quanta mudança! Por onde anda Fafá? Deve ter se modernizado, talvez esteja formada, com doutorado, quem sabe. Tudo pode acontecer nesse mundo de meu Deus.

Pode ter se transformado em uma leitora voraz, uma exímia conhecedora de internet e esteja inserida nos vários meios de comunicação. Deve estar lendo e escrevendo muito bem e, melhor que eu, domine a internet e as ferramentas tecnológicas. Sendo assim, se Fafá chegar a ler esta crônica, peço que me procure para que me dê umas aulas sobre tecnologia, internet e uso de mídias, uma vez que os meus parcos conhecimentos na área, apenas me permitem a digitação livre dessa crônica, cuja formatação e ajuste final preciso me socorrer de especialistas.

Quem sabe Fafá é da área de tecnologia e sendo assim poderia me dar umas aulas de informática e afins. Seria a inversão dos papéis. Um dia eu lhe transmiti o ensino da leitura e da escrita e ela agora me ensinaria a navegar na internet, usar as ferramentas tecnológicas e a me inserir nas redes sociais.

Tal qual Fafá, eu ficaria surpresa, admirada e emocionada com essa descoberta. Ela, em seu tempo, com a minha colaboração, teve a oportunidade de conhecer as primeiras letras e um pouco do mundo real. Eu, no meu tempo, com o seu auxílio teria a oportunidade de conhecer muito do mundo virtual. Como seria bom esse reencontro. Leia Fafá, esta crônica e me procure. Você sabe onde me encontrar!

Cláudia Coêlho
Enviado por Cláudia Coêlho em 25/09/2017
Reeditado em 10/09/2020
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