O Padre

Vez ou outra, em um de seus raros excessos de bondade, a vida ousa nos presentear com momentos inesquecíveis. Estes instantes, por conseguirem transpassar as densas barreiras do trivial, aglutinam-se de modo indissolúvel na memória, e dela, dificilmente se apartam.

A segunda-feira da semana passada foi o oposto de tudo que descrevi no parágrafo anterior. Seguia eu o meu caminho pelas ruas apertadas da Santa Cecília, ansiando chegar logo à estação, quando vi sair de um mercadinho modesto, um padre altivo e presunçoso.

De frente para o mercado, esparramado pela calçada e solto pelo Divino (ou pela infelicidade de suas próprias escolhas), achava-se um mendigo desventurado. Este, necessitado de alimentos e padecendo de fome, vendo o padre sair do comércio com duas sacolas cheias de comidas, clamou: “Seu padre, me dá uma moedinha ou alguma coisa pra comer”.

O clérigo, impassível, ignorou a miséria do necessitado, sem nem ao menos olhá-lo no rosto ou pesar-lhe o coração.

Naquele instante, borbulharam-se em mim acusações e questionamentos dos mais raivosos. Como pôde aquele padre insensível não se comover diante das aflições do desfavorecido? Será que aquele cristão não se lembrava das palavras de São Tiago ao dizer que a religião de Deus é visitar o órfão, o pobre e a viúva? Teria ele se esquecido que é melhor dar do que receber? Havia ele abandonado em algum lugar da mente os ensinamentos de Jesus? Talvez teria ele deslembrado da admoestação que o apóstolo Paulo fez sobre ser imitador de Cristo?

Jurei a mim e ao Criador que pleitearia a causa daquele desafortunado homem. Se preciso fosse, ser-lhe-ia por testemunha no tribunal de Cristo, e prestaria meu depoimento diante do Senhor contra a procedência daquele impiedoso sacristão.

Quando entrei no metrô, ainda ruminava minhas raivas e inquietações. Comecei a pensar no tamanho da transgressão daquele padre, que escondia por debaixo da batina impecável, dos anéis de ouro, do crucifixo pesado, uma conduta asquerosa, fétida e enegrecida.

Passei a pensar se existia pecado maior do que aquele: negar ajuda a um necessitado. Então, concluí que pecados maiores que o do padre eram apenas os meus, que julguei implacavelmente a vida do clérigo e assim como ele, larguei na miséria o mendigo coitado, a naufragar na fome e na indiferença.