Falta de Compostura

Estava eu, no banco do passageiro do carro do meu namorado e ele no volante, nervoso como sempre por conta do trânsito de uma segunda-feira de manhã na região sul de São Paulo, onde parece não ter dia bom para quem tem carro, mas a pauta aqui vai ser outra. Ele possui aquela central multimídia bonitinha que pega alguns poucos canais de televisão, sabe? Pois bem, sintonizamos no noticiário, pois o jornal do rádio estava meio chato então resolvemos assistir, mais eu do que ele por que este por sua vez precisava prestar atenção na estrada.

A caminho do terminal rodoviário onde eu iria ser deixado para pegar meu ônibus e ir trabalhar saltitando feliz da minha vida, recebemos a notícia fresquinha de um tiroteio sem mais e nem menos em Las Vegas durante um show de música Country, bem na frente de um dos prédios mais famosos de lá, me falha a memória para lembrar o nome. Enfim, foi transmitido em seguida cenas filmadas muito provavelmente por alguma câmera de celular e era horripilante. Senti os cabelinhos do meu nariz arrepiarem e pensava aquela frase que sempre me fez virar os olhos quando eu era pré-adolescente: "este mundo está perdido".

Em seguida ouvíamos a informação de que não se sabia ainda se era um atentado terrorista, mas que já haviam pelo menos 20 mortes confirmadas e mais um número de feridos a qual não me lembro, dados que aumentaram quando conferi pela tarde na internet. Assim que as imagens cortaram para a apresentadora, via-se no rosto daquela mulher uma tristeza misturada a indignação, confusão, uma porção de coisas fáceis de se entender, pois eu estava na mesma situação. Quando ela foi conversar com sua colega que iria nos passar a previsão do tempo para nos informar que ia chover a semana toda, ela disparou a sua tristeza em meio ao telejornal demonstrando um sentimento de revolta e compaixão para com aquelas vítimas. Até aí, vida que segue, o duro foi ouvir o que eu ouvi do motorista ao meu lado, "eu achei falta de compostura da âncora, ela não devia se mostrar dessa forma, ela tem um jornal para apresentar". Falta de compostura? - Eu perguntei e, confuso, com vontade de dar três tapas com as costas das mãos na cara dele, esperei uma explicação no mínimo plausível. "Ela não deveria mostrar sentimento, ficou muito na cara que ela ficou abalada com toda aquela situação". Os argumentos cessaram quando eu soltei um "mas é lógico, afinal acima de repórter ela é um ser humano, estranho fosse ela não se chocar".

Já bem esqueci das vítimas em Las Vegas tomado por um ar de "até tu Brutos?" e, pensando algo que já havia conversado comigo mesmo, cansado de ver posts no face e, vídeos dos youtubers. O bom senso foi perdido, a barbárie se tornou normal. O que dizer de um país onde um juiz libera um cara que ejaculou em uma mulher em público? Era para eu ficar surpreso? Devo estar exagerando.

Se eu sou a esposa daquele juiz, ia botar ele para dormir no sofá. E se fosse comigo, seu filha da puta? Com a sua mãe? Meu Deus, o que deu em você? E seria disso para baixo.

Mas aí o meu futuro esposo acha que o comportamento daquela pessoa foi inadequado. Graças a Deus eu sei que essa postura não é tendencial, conversamos, ele entendeu e reconheceu que deu uma bola fora. Falta de compostura teve um sentido diferente para mim essa manhã. Saltei do carro, me despedi e fui até o trabalho naquela baldeação de ônibus, trem e metrô pensando nas famílias que iriam receber a noticia ou de repente acompanhavam o telejornal e sabiam que um parente estava lá naquele momento, desesperados ligando em seus celulares para saber se estava tudo bem. A frase "falta de compostura" ecoou na minha cabeça por um tempo, igual ao zunido de pernilongo, foi bem chato não conseguir matar aquilo com as palmas das mãos, mas já passou. O problema foi associar a algo maior que sabemos que existe, o dar de ombros virou moda e a maior parte já aderiu. Onde vamos parar?

Gustavo Barreto
Enviado por Gustavo Barreto em 03/10/2017
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