A Caneca

Ele andava meio, digamos assim, com medo de escrever. É que seus leitores mais próximos teimavam em transformar seus textos em relatos autobiográficos. Se o personagem de sua história passeava por um amor impossível, conjecturavam viagens extraconjugais do escritor. Se o personagem reclamava do serviço, perguntavam como estava no emprego. Não adiantava dizer que era um personagem e que, como era da própria natureza exagerada do poeta, eram colocadas lentes de aumento nas emoções e sentimentos.

Ele estava preocupado. Talvez seus personagens fossem um alter-ego, que nas entrelinhas (ou em poesias nas entre rimas) estivesse se expondo, se desnudando e escancarando os seus desejos e dilemas. Ele tinha um certo pudor e gostaria de acreditar em seus textos como uma válvula de escape, onde a liberdade do personagem deveria estar garantida por lei e a separação dele com o escritor fosse um mandamento sagrado. Luis Fernando Veríssimo poderia continuar a brincar (sem preocupações com o “politicamente correto”) com grosserias machistas de um Analista de Bagé, isto é claro, se ninguém entendesse como suas, as delicadezas da pata de um elefante de seu personagem bronco.

Uma poesia do nosso herói que teve como tema a tristeza tinha lhe rendido conversas com parentes com quem não falava há muito tempo. “-Tudo bem com você?” - Sua vontade era de responder “-Sim, estou cuidando dos horários e não deixo de tomar meus antidepressivos”, mas respondia “-Claro!” e seu temperamento paciente fazia explicar que tinha sido somente uma poesia e que ele estava feliz, mas as interações repetidas iam minando sua convicção e o “-Claro” ia ficando apagado, indo para um nublado e passando para um tempo fechado, num degradê para o escuro que terminava na melhor das hipóteses com um “-Na verdade estou com uma dorzinha aqui e ali mas logo passa.”. Será que a preocupação dos outros é que lhe criava a necessidade de um colinho?

Estava decidido - o próximo texto seria sobre a caneca. É, a caneca. A caneca e suas variedades de materiais e formatos, suas múltiplas utilidades, seus vários tipos de alças, para um, dois, três ou quatro dedos.

Pois não é que a caneca rendeu. Uma tia muito querida, que estava entre os loucos que liam seus textos, ligou perguntando se ele estava se sentindo muito usado. Uma irmã ligou perguntando se a temperatura do fardo de sua vida estava acima de suas possibilidades de isolamento térmico – bom pelo menos estava espalhando poesia. Pronto, ele tinha sua própria caneca personificada. Não, não era personalizada do tipo “Sou da melhor madrinha do mundo” ou “Colorado, minha paixão”, era na verdade personificada mesmo - Uma prosopopéia de caneca com escritor, onde as verdades secretas estavam todas ali expostas, com seus segredos mais íntimos transbordando da Caneca.

Muitos ligaram preocupados com a “Caneca”. Muitos queriam vê-lo para ter a certeza de que estava tudo bem. Achavam que a Caneca podia ter algum trincado escondido.

Marcaram um almoço com a família toda e nem era natal. Queriam saber o que aquela Caneca escondia.

Naquele almoço boa parte dos seus leitores estavam reunidos - aqueles que julgavam seus textos um diário escrito em algum código que, como excelentes investigadores, fanáticos por enigmas, buscavam a glória de decifrar. Aproveitou a oportunidade e, ele que não era muito de falar, pediu atenção e, em tom solene declarou:

-Queridos, tem algo que eu preciso falar para acabar com essa minha agonia- o silêncio se fez presente. Ouvidos atentos buscavam, assim como passarinhos recém-saídos dos ovos com seus bicos para cima esticando o pescoço, alguma coisa que lhes fosse oferecida - Estou doente - pôde ver alguns se entreolharem com uma mensagem facial de um “-Não falei?”, como se nos seus textos já tivesse o prenúncio de uma catástrofe pessoal.

-A Caneca né...- arriscou um querendo os louros da descoberta, enquanto um primo sussurrava ao ouvido do outro “-Bem falei que aquele “tirei a caneca do armário” que estava no texto era a revelação de que esta Caneca na verdade é xícara e seu casamento é só fachada, aposto que é AIDS.”

-A caneca??? Tem me ajudado muito, estou tomando um chá de mel com limão na minha caneca preferida e logo logo estarei 100%.

-Como assim 100%? – perguntou a mãe. Aquele primo do sussurro seguiu com sua linha de raciocínio sussurrando para seu outro primo: “-100% bichona!”

-Bom, espero me recuperar logo deste R-E-S-F-R-I-A-D-O. - antes que os “-Como?” ou “-O que?” começassem a pipocar e percebendo a grau de decepção que seu bem estar causava, continuou – mas podem falar para quem quiser saber que estou com um resfriado em fase terminal.