A invisibilidade em movimento

Noite de quarta-feira como outra qualquer, 18 de setembro de 2013. No ponto de ônibus do Centro de Maceió, depois de um dia intenso de trabalho, estava eu ali, mais uma vez junto a um monte de gente esperando o tão sonhado ônibus nosso de cada dia. Não existe alegria maior que vê-lo chegar, ainda mais se tiver cadeiras vazias, coisa difícil de acontecer. Às vezes, é preferível esperar o próximo para que se arrisque sentar.

O centro da cidade é bem movimentado durante o dia, à noite não é diferente, pois além da aglomeração das pessoas que estão saindo de seus trabalhos, tem também os que sobrevivem de toda aquela agitação. Os batentes das portas das lojas servem como banco, pontos de descanso para que a espera não fique tão pesada.

No centro todo o cenário é modificado quando anoitece, ali no corredor de ônibus, os vendedores ambulantes noturnos aparecem, e uma variedade enorme de produtos e serviços: carrinhos de churrasco, batatinha frita, carrinhos de CD anunciando a nova onda do momento, milho verde cozido na espiga ou no copo, milho assado, canjica, churros, coentro, tomate, cebola pimentão, feijão verde, acerola, laranja, caldinho de feijão, mugunzá, caipirinha, sopa. No mesmo lugar passam também perambulando os meninos e meninas que cheiram cola, os catadores de latinhas e papelão que reviram todos os sacos e caixas que acabaram de ser colocados nas calçadas em frente das lojas.

Tem também sempre alguém precisando de ajuda para completar a sua passagem seja para um dos bairros ou cidade do interior, gente que de alguma forma foi parar naquele lugar, ou por causa de assalto ou doença na família, não tem como retornar para a sua casa e agora precisa da piedade daqueles que estão ali esperando o seu transporte, e como sempre o problema é resolvido.

De olhos bem abertos para todo o movimento, resolvi sentar num desses batentes, comprar um churrasco e um refrigerante, aproveitar para descansar sem que precisasse me preocupar com o horário nem com o ônibus, afinal, já estava sentada mesmo, e, se esperasse o próximo e o próximo, não estaria em tanta desvantagem assim, pois os ônibus estariam vazios e o trânsito muito mais tranquilo.

Fui me encantando com tudo aquilo que via. Os jovens de passos apressados, fones no ouvido, em seus rostos o cansaço, mas com aspectos de felicidade, de quem tem um emprego nesses tempos difíceis, sinal de esperança e que a coisa tem jeito sim; senhores vendedores de lojas de larga experiência carregando também o peso do dia, mas o ar de satisfação no rosto na espera de uma latinha de cerveja, um espetinho de carne, logo depois, um cigarro, gargalhadas e mais gargalhadas com seus companheiros de trabalho enquanto esperam o ônibus. Comemoração? Sim! Der quê? Não importa! Mais um dia findou. Cada um segue depois o seu caminho, vão para casa com a certeza de que cumpriram mais um dia os seus deveres.

Muitos dos que estão ali ainda vão encarar uma sala de aula na faculdade. Nas suas costas, a mochila, dentro dela, além dos lápis, canetas, borrachas, cadernos, apostilas, livros, pastilhas para disfarçar a fome e o sono durante a noite, está também viva a esperança de um tempo melhor, anúncio de que a coisa ainda tem jeito sim!

No vai e vem de toda aquela gente, uma amiga que não a via há muito tempo conseguiu me encontrar ali sentadinha na porta daquela loja de importados, nessas alturas, eu já tinha tomado todo o refrigerante, tinha guardado a latinha da bolsa junto ao espeto do churrasco, eu estava acomodada demais naquele cantinho para levantar e usar a lixeira que fica perto do poste.

Quando a minha amiga me viu, não entendeu direito o que eu estava fazendo ali, mas lhe expliquei que naquela noite eu não tinha pressa de chegar em casa, pois estava cansada demais, e queria esperar um ônibus vazio, para isso, resolvi ficar ali. Ela riu, me achando estranha, comecei a lhe falar a respeito das nossas observações ou falta delas no nosso cotidiano. Ficamos conversando.

Antes dela chegar eu já estava observando um rapaz que estava revirando o lixo de uma casa de pastel e caldo de cana que ficava em frente à loja que eu estava sentada. Um jovem rapaz de aspectos maltratado, roupas sujas, o cabelo encaracolado, loiro queimado do sol. O fitei por um bom tempo, me lastimava por ver uma cena assim. Parecia um animal no meio de gente, magro, tão magro. Mas, não magro de regime, magro de fome, de desprezo, de vida, de dignidade, magro de gente, ausente dali. Era um ser invisível, as pessoas não o notavam, ele circulava com facilidade, rasgava os sacos plásticos que tinham os bagaços de cana, os rasgava com tanta euforia que, em questão de minutos todo o lixo que antes estava ensacado e organizado para o carro do lixo quando passasse, se transformou numa pequena montanha, vergonha do estabelecimento .

Eu já não tinha mais assunto para tratar com a minha amiga, apesar de ter ficado feliz em vê-la, mas no momento me interessava saber mais daquele jovem. Depois que ele revira todo o lixo e faz toda aquela bagunça, ele olha na nossa direção. Viria também para o lado de cá para revirar os sacos e as caixas que estavam bem à minha frente. Como eu queria vê-lo de perto! Ele foi se aproximando, parece que percebeu que eu o olhava. Ele baixa levemente a cabeça, e de forma tímida se achega, mexe aquele lixo, não mais na mesma velocidade, mas como se estivesse acanhado de alguma coisa. Deixei que ele se abaixasse e o olhei bem nos olhos.

Meu Deus! Como pode?

Uma pessoa não conseguir sequer olhar para o outro?

Pareceu mais um reconhecimento de duas espécies distintas, onde um quer ter certeza que o outro não é uma ameaça. Ao olhá-lo de perto, percebi que os seus lábios eram todos estourados, as maçãs do rosto eram avermelhadas e descascadas, os ossos dos ombros eram visíveis, a sua camisa de candidato muito suja dançava em seu corpo por conta de sua magreza, uma calça cortada um pouco acima do joelho, simulava uma bermuda. Reparei que estava descalço, no seu braço esquerdo, um detalhe chamava a atenção: usava um terço de madeira enrolado.

Ao se aproximar mais um pouquinho de nós duas, ele perguntou se nós poderíamos lhe dar algum dinheiro. O primeiro contato verbal aconteceu. Nesse momento, me senti à vontade para conversar com ele, foi o primeiro passo. Perguntei o seu nome, ele sorriu. Nem acreditei que tinha visto um sorriso seu. Foi quando entendi que podia puxar mais assunto. Perguntei sobre a sua família, a forma como foi parar em situação de rua, se estudava. O deixei tonto de tantas perguntas, fui interrompida por minha que num ato de protesto por tê-lo visto com um terço no braço. Levantou-se e perguntou se ele sabia rezar. Por ser muito católica e devota de Nossa Senhora, quis saber por que um ser daquele jeito andava com um terço, olhou bem pra ele e disse que se rezasse para ela ver, lhe daria cinquenta centavos. Ora! O rapaz sequer pensou e começou logo a rezar. Ela abriu a bolsa e foi pegando a moeda para entregar ao rapaz quando eu também os interrompi, disse para ela que oração e/ou religião não se vende, não se negocia, muito menos deve servir de senha para qualquer outra coisa.

O rapaz riu. Não deu tempo contar sua história nem dizer seu nome. Prometi a ele que no outro dia estaria naquele horário e lugar. Ele olhou para trás e mostrou que sua tia estava se aproximando. Ela não nos viu, passou por ele, fez um gesto para que a seguisse. Os trajes dela também eram de maus-tratos.

Ele a seguiu. Os dois agora intercalavam as portas de lojas com os sacos e caixas de lixo. Os acompanhei com os olhos até onde pude. Retornei em seguida o olhar para a minha amiga que já não estava ao meu lado. Foi quando me dei conta de que o ônibus dela já tinha passado, ela deve ter falado comigo enquanto eu acompanhava aquele rapaz com a sua tia, por isso não a percebi.

De tempos em tempos permaneço até mais tarde naquele ponto para vê se o encontro, vejo muitos outros, mas ele não vi mais. A vida tem cansaço, tem insatisfação, tem desemprego... tem gente, muita gente. E tem os invisíveis que estão fora até desses problemas por não serem mais reconhecidos gente. Invisíveis até quando?

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