Platônico

Sai sem rumo. Sei que invariavelmente nestes dias eu ia para uma praça onde com um jornal de álibi ficava olhando determinada janela de uma casa que ficava do outro lado da praça. Era ali que ela morava. De longe olhava a sua janela. Alguém abria, meu coração acelerava. Cortinas abertas voando ao sabor do vento que levava um pouco da minha energia no ar e gritava para que ela colocasse o rosto para fora e admirasse a paisagem. Era raro, mas acontecia. E por ser raro, quando acontecia degustava cada micro segundo. Buscava nas expressões faciais conversar com seu coração. Se a fisionomia era triste ficava imaginando qual seria o motivo e como eu poderia ajudar, se estava alegre minha alegria vinha com uma preocupação: será que ela teria encontrado alguém, será que estava apaixonada? Mas cada segundo que ela não aparecia me dava forças como uma mola sendo comprimida, pois sei que uma hora ela iria aparecer e esta mola iria explodir de alegria. Às vezes nesta espera um temporal se anunciava e a preocupação de ficar encharcado era engolida pela chance de vê-la correndo fechar a janela. Não percebia as horas passando e a noção de tempo me era dado pelas luzes que se acendiam no quarto avisando do crepúsculo, mas que também me enchiam de esperança de que ela estava lá.

O que estaria fazendo?

Num destes dias meu coração deu um sobressalto. Parece que ela me olhou um pouco mais demorado como quem procura acertar o foco e fechou a janela. Ela teria percebido que eu estava ali. Acho que foi só coincidência, pois eu ficava no outro lado da praça. Meus pensamentos agitados numa assembléia deliberavam as razões dela ter fechado à janela àquela hora. Será que ela iria sair? Acho melhor eu ir, quem sabe ela não saia e venha passar perto. Descobrirá que meu jornal é de uma semana. Mas outro grupo mais ousado gritava subindo na mesa: É isto! Talvez ela passe aqui perto e você querendo perder esta oportunidade. Enquanto meus pensamentos não se decidiam fui me distraindo e de repente o choque:

-Oi. – era ela, e estava me cumprimentando, ou seria um delírio da assembléia.

-Oi – procurei ser o mais normal possível para um doido que fica quase todo dia sentado horas numa praça, fingindo ler um jornal.

-Meio passado este seu jornal né? - Ela deve ter visto a data.

-Na verdade eu gosto de palavras cruzadas – nossa em casa me daria uma medalha para minha presença de espírito.

-Nossa eu também adoro, posso ajudar?

-Como assim?

-Ué ajudar você a fazer as palavras cruzadas?

-E você me conhece?

-Você não é um rapaz que vem sempre nesta praça e senta sempre neste banco?

-Poderia até ser, mas isto não é pouco para me tornar um conhecido?

-Palavras cruzadas é um bom jogo para duas pessoas se conhecerem. Eu me chamo Bárbara. Qual o seu nome?

-Meu nome é Pedro. – nem no mais incrível dos meus sonhos eu teria imaginado esta situação.

-Vamos lá então. Posso sentar ao seu lado?

-P..ode – falei meio titubeante. Sorte que eu tinha uma caneta, pois gostava de escrever poesias num bloquinho que carregava no bolso da jaqueta. Abri a folha do jornal na página das palavras cruzadas. Ela se chegou mais perto e eu acomodei o jornal dividindo parte no meu colo e parte no dela. Entreguei a caneta para ela. Ela encostava seu braço no meu e me tirava a concentração.

-Vamos- lá então: flor com 9 letras

-Amor-perfeito – olhava nos olhos dela embriagado

-Não dá. Esta flor tem onze e ainda tem um hifen no meio.

-Margarida.

-Você parece bom nisto, mas não vou escrever ainda, vamos ver se na vertical podemos aproveitar as letras.de margarida. Temor, fobia com 4 letras.

-Medo.

-Boa! Ei do que você tem medo?

-Como assim, do que eu tenho medo? Tem esta pergunta ai nas cruzadas?

-Háháhá, claro que não, mas eu disse que este jogo era ótimo para as pessoas se conhecerem.

-Tenho medo de perguntas invasivas.

-Por quê? Não gosta de se expor? Tem algo a esconder? Minha pergunta foi invasiva?

-E se eu dissesse que tenho. Sou um maníaco do parque e tenho entre minhas vítimas preferidas moças lindas que gostam de jogar palavras cruzadas e fazer perguntas invasivas.

-Nossa muito obrigada pela “moça linda”.

-Parece que você não ouviu o resto.

-Você é divertido.

-Simulação de gargalhada com 3 letras?

-Como?

-KKK

-Não falei que você é divertido?!

-E se eu falar que tenho um amor platônico, onde a moça idealizada nos meus sonhos está ficando sem graça?

-Como assim?

-Você é muito simples e simpática para ser verdade

-Prêmio pela coragem com 5 letras?

-Hã?

-Chegue mais perto e olhe bem nos meus olhos – ela foi se aproximando e disse “beijo” e foi aproximando seus lábios dos meus...

Um “Safado!” vindo de uma velhinha que me olhava fazendo biquinho me trazia de novo à realidade e ficando vesgo eu olhava para meus lábios e passava a mão como quem queria limpar uma sujeira, o que pensei na hora para tentar remediar aquela posição ridícula.

Nossa! Era bom demais para ser verdade. E eu não sei? Por isto mesmo era só imaginação. Atenção...acendeu a luz do quarto.