A Casa de Clarice

Nunca conheci verdadeiramente a casa de Clarice, exceto aquilo que ela me contava. Dizia ela, "moro num cortiço". Clarice era fã de literatura, talvez a referencia ao cortiço fosse por conta do clássico de Aloísio de Azevedo, como as letras a encantavam. Era um espetáculo olhar em seus olhos, era como uma super nova explodindo, milhões de letras como signos procurando se unirem para criarem galáxias. Clarice era pequena em estatura, isto a incomodava, pois sempre dentro das relações humanas (as pessoas tem hábitos de tecer julgamento pela aparência), chamavam-na de menina. Como isto a incomodava. Contudo, bastava segundos de diálogo para vê-la gigante. Tenho em mim, a doce impressão, que ela incomodava muito mais as pessoas com seu jeito de questiona-las quando tentavam diminui-la do que era incomodada por isto. Era lindo de ver...

A casa de Clarice era grande. Os moradores do cortiço, como ela dizia, eram todos da família. Um cortiço familiar. Brigas e discussões são coisas comuns entre família, e quando não existem fronteiras a serem respeitadas as tensões ganham clímax de oriente médio. Por diversas vezes em nossas conversas imaginei a faixa de Gaza, as gerações mais novas, os palestino, tentando estabelecer seu espaço e, as mais velhas, israelitas, dizendo que o espaço sempre foram deles, com poder bélico e tradições que lhes davam este direito. Era lindo de ver Clarice indignada pelas tradições...

A casa de Clarice ficava em uma ladeira muito íngreme, era o local da diversidade. Em finais de semana se ouvia funk e forró à altura ensurdecedora. Para pessoas de ouvidos educados era difícil entender. A ladeira tinha nome de santa, era interessante pensar nisto, pois é sabido que a intensão dos santos é agregar pessoas de diferentes gostos de maneira pacífica em torno de uma fé. Isto sempre me levou a pensar no sacro em torno daquele rua, pois Clarice, em um esforço monumental, sempre trabalhou pela paz de seu cortiço. Nunca me esqueço como era atrapalhado a numeração daquela rua, as vezes que a encontrei foi por conta da árvore em frente a casa que escondia a numeração. Mais sabia que a casa ficava entre os números 13-10. Árvores são encantadoras, principalmente quando florem. Era bonita de se ver a árvore da casa de Clarice florida...

Outra coisa muito interessante na casa de Clarice era o bairro onde ficava, tinha nome indígena. Dessas ironias que espantam os olhos de quem gosta de história. Quem diria, um bairro com nome indígena com uma rua com nome de santa. Isto remonta a história em 500 anos, santos cristãos sobre terras indígenas. Só menciono isto porque Clarice sempre me dizia de seus hábitos de andar nua por sua casa, era uma pequena índia com aspectos europeus. Era lindo imaginar Clarice nua...

Foi triste o dia em que passando em frente a casa de Clarice, no bairro com nome indígena e na rua com nome de santa, entre os números 13-10, escondido sob a sombra da árvore no portão de entrada a placa de "vende-se". Meu coração se encheu de tristeza. Como disse no começo, não conheci a mixórdia que era a casa de Clarice, mas conheci a anarquia que era os sentimentos de Clarice e cheguei a ama-la por isto sem nunca dizer. Era gostoso amar Clarice as escondidas...

Acredito no fundo de meu ser que sentimentos são o caos em eterno movimento. Como a rua de Clarice. Como a casa de Clarice. Como a própria Clarice. Tentar organiza-los é acabar com o que há de mais belo no sentir, a liberdade. Era notória a gratidão que tinha à Clarice...

Ley Gomes
Enviado por Ley Gomes em 12/10/2017
Reeditado em 14/01/2019
Código do texto: T6140282
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