JEITO DE CONTAR

Meu pensamento indicava que eu tinha que arranjar um jeito especial para contar histórias tristes. Meu tipo romanceado de escrever se encaixava em qualquer tema. Eu só tinha que seguir minha intuição.

Imaginei que depoimentos e fatos, cada um dentro dos seus limites éticos, conseguiriam retratar uma época que tem por pano de fundo as dores e dramas de uma grave doença.

O estilo de contar drama, como nos dizeres do poeta passarinho Mário Quintana, seria uma “deficiência que faz com que um autor só consiga escrever como pode”.

Quem sabe poderia ser o estilo de enredo daqueles antigos filmes seriados. Um registro onde as pessoas deixam de ser expectadores para se integrar na metamorfose que contraria a mansidão da natureza, transformando-se instantaneamente em testemunhos de uma doença de comportamento tão surpreendente quanto à realidade fantástica.

Cada episódio escrito seria uma aventura, um diário de desesperança, já que desafiava o encontro de pistas que a doença oferece para serem seguidas. Às vezes elas levam para lugar nenhum, pois mostra corpo e membros atingidos em nível de interatividade sem informações cifradas, não deixando o doente na incompletude ou na obrigação de fazer exercícios de imaginação para entender a narrativa.

Escrever sobre o próprio infortúnio é sadismo dizem alguns. Outros afirmam que de fato é uma prova de coragem, tão intensa quanto à travessia dramática de um tempo de tratamento. Fazendo da realidade uma regressão a condição de paciente, pelas tristes recordações volta a sentir as mesmas dores sem poder fazer abordagens terapêuticas ocasionais.

As aplicações de tratamentos mais intensos durante a travessia, além de atacar aquele tipo de mal, seus efeitos colaterais praticamente anulam todo o sistema imunológico de defesa do organismo, que até apresentar a resposta necessária e esperada, não garante que se repita mesmo que inesperadamente, uma cena de impacto com novo ataque de células destrutivas.

Não pode haver descompasso entre bom condicionamento psicológico, o médico clínico, e a magnitude da realidade do amor pela vida.

Este conjunto, em nada destituído de sentido, faz entender o quanto se pode perder não agindo contra o mal ficando calado num canto esperando a morte chegar.

Todos os resultados conseguidos foram suficientemente encorajadores para me estimular a repetir que estou vivo e continuar me considerando imortal, cheio de vontade para nutrir e gerar uma produção constante de novas células sadias no meu modo de entender, para que um dia a prudência médica esteja consciente e com segurança suficiente diagnosticar a minha cura.

O câncer, mal comparando, sempre me pareceu como um bicho da fruta que mais gosto. Comemos ele na maçã e na goiaba, mas nunca o vemos. Quando acontece engasgamos. Instantaneamente reagimos. Rogamos algumas pragas que nem sabíamos que existiam. São pragas placebas. Não fazem efeito.

Eu que sempre gostei de escrever sobre temas ficcionais. O que escrever sobre a minha própria com uma história.

Estava olhando para mim mesmo. Estava bom. Nada mais grave poderia me atingir.

Agora eu tinha que ter a capacidade de tocar a todos que participaram da minha saga, pelo que fizeram por mim sem que soubessem. Conhecendo-os como conheço sei que recusariam à homenagem banalizando-a, me fazendo pensar que uma história sobre a mesma coisa seria muito ficcionista, tal a dimensão que alcança a humildade e as virtudes de cada um.

Eu lutei contra o poder do bicho. A força invisível que ele tem decorre de uma aliança entre elementos do mundo real e do fictício, onde o principal objetivo é dar sumiço ao seu portador. Mesmo sendo médico é muito difícil enxergar a gravidade de uma coisa que poucos conseguem se safar.

Como dizia o filósofo: “Não sei quem descobriu a água, mas sei que não foi um peixe”. Tudo é invisível.

Quanta dificuldade para criar um relacionamento com outros pacientes nas mesmas condições, tentando alterar coisas que são verdadeiras, para diminuir dores e trazê-los de volta à vida, sem alterar os fatos para contar uma história que nem sempre é o que parece ser.

A pedagogia nos ensina que os seres humanos não são particularmente bons memorizadores e se revelam maus argumentadores. Por isso se enganam facilmente. Não fomos e nem queremos ser instruídos a identificar ardilosos processos de doenças como o câncer.

Algumas palavras de vez em quando vêm à tona e são tidas como novas. Na realidade são velhas, como a resiliência, por exemplo, que na Física conceitua a resistência ao choque da devolução da energia que cessa a incidência sobre um corpo. Agora está sendo aplicada às ciências sociais e humanas. É muito referida nos processos que explicam a superação de crises e adversidades em indivíduos.

A outra palavra é alteridade, que representa, em sua profundidade, as leis cósmicas de convívio entre os seres, ou seja, a pessoa que a vivencia passa a ser mais fraterna em todos os sentidos, deixando de criticar, julgar e agredir.

Existe ainda outra palavra, que se chama metacognição, utilizada em psicologia educacional, que significa aprender como se aprende, expondo os alunos a arquitetura da mente, o que ela faz bem e o que não faz.

Qualquer suspense que porventura aqui nesta narrativa surgir, faz alusão ao sentimento da minha ansiedade frente ao perigo de morte que corri frente ao desconhecido e surpreendente mundo do câncer, hoje adormecido.

Os médicos não podem esperar que descobertas para a cura do câncer, de qualquer doença ou a formação de conceitos, ocorram incidentalmente como palavras que ressurgem e se façam uso delas como se fossem novas.

Seu grande desafio é o de contribuir com o paciente ajudando-o a se utilizar da sua capacidade de pensar – ensinar a pensar – bem como este tornar-se consciente a quem recorrer para manter a continuidade da vida.

É o meu jeito de contar.

Em princípio... Como diria o médico.

Nilton Salvador
Enviado por Nilton Salvador em 19/08/2007
Código do texto: T614050