Por um espaço público do infantil

(às crianças que têm e àss que não têm o direito de serem infantis)

Há muito tempo presto atenção em locais públicos dedicados às brincadeiras das crianças, ou, propriamente, aos parques infantis de nossa cidade. Como não encontrei boas notícias sobre eles, resolvi escrever uma declaração em suas defesas, uma vez que eles se parecem como crianças abandonadas que, no seu desamparo extremo, gritam por proteção. Depois de ver tantos balanços quebrados, escorregadores enferrujados, gangorras em que o equilíbrio é a queda, areias com cor de terra, etc. e tal, passei a conceber os parques infantis como certa gravura da condição infantil no espaço público.

O infantil ao qual nos referimos está endereçado às crianças, embora muitas destas não portem essa maneira de ser e estar no mundo: algumas devido a problemas sociais, econômicos, como aquelas que trabalham para sobreviver; outras, não vivem este infantil pela precipitação cultural em vê-las adultas. O que é então esta condição infantil?

Primeiro, não é somente uma idade cronológica, mas um tempo em que vivemos intensamente nossa existência; ele nos constitui, ficando para sempre conosco, com maior ou menor intensidade. O livro de Lya Luft, “Mar de dentro”, é ilustrativo disso. Esta obra, tão vasta de inquietações, ao mesmo tempo em que descreve passagens da infância da autora, reproduz a de todos nós; interroga sobre os mistérios que rondam o infantil, uma vez que conjuga o passado e o presente, o particular e o universal. Mesmo que a sucessão dos dias, dos anos, das horas, nos ultrapasse, habitamos nas raízes do corpo, nos fragmentos do tempo em nossa memória. Relembramos isso no colorido dos lápis de cor, nas réguas, nas sapatas. As sapatas? Um dia destes encontrei algo muito interessante numa pracinha: o desenho de uma sapata. Tentei pular, ensinar minha filha a voar por números e espaços da imaginação. Não lembrava mais como era o jogo, mas ficaram restos mnêmicos da sensação prazerosa de um outro mundo.

A condição infantil é organizada por outro tempo, outro espaço. O tempo é o do prazer, do eu-prazer como diz Freud, da imaginação, da criação. De nada se quer saber do ‘Oriente’ ou do ‘Technos’. O infantil é a possibilidade das junções entre real e ficção. Não é por acaso que Freud analisa as relações entre o brincar e a criação artística, concebendo no mundo infantil as fontes da criação, onde fantasia e desejo confluem.

Porém, essa constituição subjetiva depende de estruturas que deem suporte a sua construção, dentre estas se encontram os dispositivos sociais no qual se incluiriam as condições públicas do brincar. Como voar em balanços, se imaginar numa astronave, mais perto das estrelas, do céu, se a qualquer momento as correntes do balanço podem se desprender abruptamente? Como é possível construir castelos de areia em meio há tantos cocôs de cachorro?

Com isso não estamos nos referindo aos materiais físicos como único elemento importante para a construção do brincar. Frequentemente, nos deparamos com os desastres da aposta em acreditar que para a criança brincar precisa somente de objetos. Muitas vezes, é o excesso deles que inibem as crianças de construírem suas brincadeiras. Brincar e brinquedos são complementares, não excludentes. Para brincar é imprescindível o outro. Por isso, merece apreço balanços seguros, gangorras perfeitas, bons escorregadores, pintados com as cores mais primárias, ilustrativas da energia de um pequeno ser, para que as crianças se sintam convidadas à mútua aproximação e acolhidas em seu mundo. Senão, cada vez mais, pintamos a gravura da exclusão do infantil no público, desinvestindo de lugares públicos como espaços, não somente de circulação de pessoas, mas de encontro com o outro. Encontro que produza uma experiência à vida. Senão, acabamos levando nossas crianças às farmácias para se divertirem nas piscinas de bolinhas e nas pracinhas plastificadas dos supermercados com seus smartphones.