Estradas Ocultas

Todos os dias o velho estava sentado em frente aquele portão. O numero era de alumínio descascado, um sessenta e seis com apenas a parte de cima presa em um parafuso enferrujado, o que segurava embaixo deveria ter se soltado com o aumento daquela visível rachadura na parede, a silhueta de outro numero seis denunciava se tratar de seiscentos e sessenta e seis. O velho usava boina, camisas de mangas compridas e bermudas em cores claras, chinelos de dedo, às vezes de borracha, outras vezes de couro. Ficava entre sete e oito horas da manhã, nas tardes de dezesseis ás dezoito horas pontualmente, ao tocar os sinos da Igreja de São Sebastião ele se recolhia. Estava sempre escrevendo, cadeira e mesa como nos tempos de escola, aquilo chamava atenção, principalmente por ele quase nunca erguer os olhos para observar os transeuntes, quando se atrevia era para massagear o pescoço enrijecido pela mesma posição. Outra peculiaridade do velho era não falar com ninguém. O rapaz dos correios precisava entregar uma correspondência naquela mesma rua, porém não encontrava o numero, vendo aquele senhor tão distraído em seus escritos relutou em incomodá-lo, mas foi até o final da rua olhando em todas as casas, certificando-se novamente de que o envelope continha as informações necessárias, nada ajudava, era uma extensão de números desordenados no inicio era os cem, mas lá no final estava o cento e dois, no meio era o numero oitocentos.

— Moço, perdoe-me incomodá-lo, mas por acaso conheces o senhor Alberto? – Indagou o rapaz com sua roupa amarela molhada de suor.

Mas o velho continuou a escrever como se nada tivesse ouvido.

— Meu senhor, não quero distraí-lo, apenas peço que me responda se conheces algum Alberto nestas imediações! Indagou novamente com a carta em mãos.

O velho sequer levantou a cabeça, para a fúria do educado carteiro. Logo depois vinha o gari arrastando sua vassoura e levantando poeira, eram folhas secas das amendoeiras, papeís e plásticos jogados na rua. Aproximou-se assoviando para disfarçar a timidez.

— Tio, não leve a mal eu tirar o seu sossego da escrevência, mas será que não teria um cafezinho com um pedaço de pão para eu reforçar as energias. Estou em jejum desde que levantei. – Disse sem olhar diretamente para o velho que escrevia compulsivamente.

O gari tinha um relógio digital, olhou de soslaio e viu que se passaram dois minutos e nada de resposta. Com um sorriso sem graça voltou a perguntar desta vez mais próximo do seu ouvido.

— Tiozinho, será que não poderia fazer a caridade de dar-me um pouco de café com um pedaço de pão? – Concluiu com a mão abafando o volume da clemência, pois passava o seu encarregado fiscalizando o serviço.

O velho não tirou a caneta da folha, no mesmo ritmo que vinha, seguiu como se nada tivesse ouvido. O gari disse algumas coisas impróprias e varreu com força, propositalmente para a poeira chegar até ele. Aquilo já passava dos limites, dizia outros velhos que viviam a comentar sobre a vida dos outros. Já tentaram lhe convidar para o forró da terceira idade, ele não se empolgara lhe chamaram para uma partida de Xadrez, sequer movera do lugar, agora estavam reunidos para cobrar a desfeita, a vingança tardaria, mas chegaria.

— Quem ele pensa que é? – Esbravejou um dos velhos fumando um cigarro de palha.

Esperaram anoitecer e as pessoas pararem de caminhar em volta do Parque. Aquela era a hora, o portão estava destrancado, acharam estranho, mas adentraram com seus porretes e fitas adesivas para amordaçá-lo, carregavam fortes rancores. Para a surpresa não havia casa, a parede que se enxergava de fora inexplicavelmente não existia do lado de dentro. O quintal era estreito e uma luz brilhava longe, eles seguiram, o rancor abundava, a noite caminhava com eles numa escuridão medonha, a lua escondeu-se atrás de uma nuvem negra e por lá ficou. O cansaço chegava, eles seguiam em frente, ás vezes tossia, outras vezes bufavam sem se darem conta de que muitas horas se passavam naquela caminhada. Entraram por um caminho que chegava até uma mata, passaram sobre uma ponte, eram cinco velhos no inicio da invasão, naquela altura eram apenas quatro, sem que eles percebessem. Um galo cantou e o apito do trem soou a frente deles, entraram sem perceberem que era apenas três, o trem andou durante algumas horas, parando em frente uma gruta, desceram apenas dois, pessoas rezavam no interior da gruta segurando velas apagadas, mas eles não pararam, no final da gruta apenas um dos velhos seguia caminhando, Um sapo gigantesco batia asas em uma espécie de ponto de ônibus, sua boca imensa estava aberta e as pessoas eram puxadas pela sua língua gosmenta, o ultimo dos velhos ia junto. O sapo voou durante toda a madrugada, no seu interior o velho escritor olhava para o velho sobrevivente e balançava a cabeça como se concordasse com alguma coisa. Um jornal da cidade publicou dias depois fotos daqueles velhos que estavam sempre naquela praça. O caso intrigava a policia, até aquele momento não havia pistas. O gari e o entregador de cartas bebiam em um bar, o papo era o desaparecimento dos velhos.

— Quem devia ter sumido era aquele infeliz que fica rabiscando a manhã inteira! – Falou o gari mastigando amendoim.

— E a tarde também! – Completou o entregador de cartas que estava ao lado.

Os dois descobriram que tinham alguma coisa em comum. O sentimento de vingança igualmente pulsava em ambos. Cochichavam, pediam mais bebidas, alguém disse matar. Saíram cambaleando, passava da meia-noite, a lua havia se escondido atrás de uma nuvem negra. A noite era escura, aqueles dois tinham em comum o sentimento de vingança, arrancariam a voz do velho a socos e outros formas violentas de se fazer as suas justiças. Um cãozinho solitário rasgava uma sacola de lixo, as sombras dos homens se espichavam na rua. O portão estava destrancado, não lhes causaram surpresa, pois o álcool deixa as coisas naturais na cabeça do ébrio, nem perceberam que a parede que se via de fora era só ilusão de óptica. Andaram durante algumas horas até chegar a um rio, um barqueiro aguardava quem quisesse fazer a travessia, o pagamento era uma moeda. Pela ação do álcool, acharam normal que o barqueiro estivesse com o rosto coberto.

— Qual o nome de vocês? – Perguntou o barqueiro com a voz arrastada como se faltasse o fôlego.

— Prazer o meu é Caronte, espero que seja inesquecível a viagem. – Concluiu o barqueiro postando-se de pé e começando a remar.