CRÔNICA

PRESENTE DO CARIOCA

Antônio Coletto – 10-04-2017

Em 1964 cursava o Técnico em Contabilidade e me preparava para prestar concurso almejando uma colocação num grande banco federal. Dois fatos, naquele ano, marcaram a minha vida. Fui aprovado no concurso e, juntamente com outros tantos brasileiros, tomei posse no novo emprego numa simpática cidadezinha do interior de São Paulo, bem distante de onde residia. O fato que indelevelmente marcou a vida de todos os brasileiros e distinguiu o país no cenário internacional, levando-o às manchetes dos maiores e mais conceituados jornais do mundo, foi o golpe militar de março/abril desse ano. Os dias vindouros mostrariam, ao passar de cada noite, o dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, os propósitos de quem assumiu o governo, sob os aplausos da Marcha pela Família e pela Liberdade e a campanha “Ouro para o bem do Brasil”. O governo havia sido deposto através de um golpe militar, cuja propaganda ostensiva o tornou conhecido pela alcunha de revolução de Março de 1964.

Embora o banco a que cheguei como funcionário concursado seja uma sociedade de economia mista, como tantas outras empresas da mesma ordem, é considerado uma empresa estatal. Como tal, sua administração é ditada pelo seu maior acionista, o governo, pois que lhe assiste este direito, embora, em regimes democráticos possa haver representação dos funcionários e da sociedade na diretoria, somente dependendo de previsão estatutária, o que não se cogitava à época. Assumido o governo pelos militares e, excepcionalmente, por aqueles civis que apoiaram o golpe, as mudanças foram drásticas e, com elas houve, também, a mudança de toda a diretoria do Banco, imprimindo-lhe outros conceitos, outros métodos administrativos, mudando, de certa maneira, os rumos de suas principais atividades.

Da mesma forma que assistíamos (ouvíamos falar, notícias que vazavam clandestinamente, a imprensa era censurada) as perseguições a políticos e ideólogos e idealistas, na versão revolucionária denominados “do contra”, ou “subversivos”, houve, também, internamente na estatal, uma “caça às bruxas”, relativamente aos funcionários que defenderam ou defendiam, como representantes da classe, em suas associações e em seus sindicatos, de uma forma ou de outra, publica ou clandestinamente, suas opiniões ou batalhavam para preservar o sagrado direito de expressão, pois ficara, institucionalmente proibido opinar - o direito de expressão, juntamente com vários outros direitos dos cidadãos, fora suspenso. Foi este o motivo que levou o Banco a remover, compulsoriamente inúmeros funcionários para agências distantes daquelas em que prestavam serviços. Entre tantos sacrificados, punidos por defenderem direitos violados encontravam-se o Carioca, o Pernanbuco e o Mineiro, que aterrissaram naquele torrão do interior paulista, sem nunca tê-lo conhecido. Os três vieram de agências bem distantes. O Carioca, de uma agência da cidade do Rio de Janeiro, sua terra natal e, para ele, desde agora e sempre, a Capital do país. As remoções foram compulsórias, sem consentimento, sem satisfação, exceto um simples memorando a comunicar duas opções: assumir na agência indicada ou a demissão. O momento político não aconselhava a perda do emprego. Preferiram afastar-se da representatividade que exerciam e aceitaram as remoções. Assim chegaram à agência onde eram esperados. O Carioca trouxe consigo para nossa cidadezinha, além de sua bagagem, a bossa, todo o frescor e leveza, os trejeitos, a malemolência e a contagiante alegria impressa nos conceitos e preceito lúdicos e hilários de toda a malandragem cariosa, nada compatível com a compulsoriedade. Dela costumava fazer troça. Na pequenina cidade onde aterrissou, após o vôo forçado pela compulsoriedade, no final do ano sem perder o brilho e a compostura, características do brasileiro nato, o carioca da gema, como se identificava, com seus acentuados “erres” e “esses” contava suas histórias e anedotas sem de nada reclamar. Vez ou outra, quando a saudade apertava, desabafava narrando seus momentos com a mulher e os filhos. Num repente, fechava os olhos, sacudia a cabeça e voltava a descrever suas participações em greves e outros movimentos sociais, advertindo sempre que de tudo participara e tudo fizera em defesa dos direitos do trabalhador. Era um idealista, um cavalheiro, sem dúvida, mas isto não o isentou da severa punição política. Pena que seus algozes não sabiam que ideologia se combate com ideologia.

A agência recebeu outros denominados “subversivos”. Algo bastante estranho, no entanto, chamou à atenção dos funcionários da casa e de quem parou para refletir sobre a questão. O raciocínio poderia não ser o correto, mas levava a uma lógica nada apreciável: se o Banco estava punindo funcionários ao enviá-los desta ou daquela agência para outras agências compulsoriamente, sem pedido, sem consentimento, estava, também, declarando o conceito que tinha da cidade, equiparando a aquilo que a ditadura, mais tarde chamou de sítio de “confinamento”, uma prisão ao ar livre, como ocorreu com a Ilha de Fernando de Noronha, para onde mandou figuras célebres do cenário nacional. Assim considerada a cidade onde trabalhávamos, bom não parecia ser, também o conceito da agência. A comparação da cidade e da agência, agora equiparadas ao local onde se cumpria penas não deixou ninguém satisfeito, pois atingia toda a população, que sempre fora altiva e ordeira. Outras cidades e agências também foram escolhidas para receberem “subversivos”. Por certo o tilintar da campainha feriu os tímpanos de algum mandatário da corte bancária e, a reflexão, por demais voluptuosa, chegou à direção geral do banco. Numa revistinha de circulação interna, editada mensalmente, apareceu uma nota na tentativa de desfazer o que denominaram equívoco, afirmaram que a intenção não fora diminuir nem enaltecer esta ou aquela agência e a cidade onde estabelecida, mas sim isolar o funcionário punido do seu meio, de onde praticara ações contrárias aos objetivos políticos do banco, levando-o a um novo ambiente social, onde pudesse ter condições de alcançar a tranqüilidade suficiente para repensar seus conceitos, suas posições, e aceitar o que fora estabelecido; e que estes fatos eram temporários e passageiros. Apaziguou os ânimos, contudo, as nuvens passam, mas, quando desabam, a terra fica molhada, às vezes provocam deslizes. Estes não são esquecidos. Fôra uma nota que despertara indagações, contudo, o receio de represália e a desconfiança gerada no filosofar de cada dia, quando todos se viam como inimigos, delator, o indefectível “dedo duro”, que exigia de cada um, uma constante vigilância no que fazia e no que falava ou escrevia, até mesmo no que lia, vez que notícias chegavam de que livros eram queimados em praça pública, jornais incendiados. Cidade Prisão ou não, a maioria dos funcionários era de origem pobre e sentia-se feliz, orgulhosa mesmo de pertencer ao quadro de funcionários dessa casa que, até então, dera o melhor tratamento a seus clientes e funcionários. O medo faz o homem ver lobisomem sob a claridade de sol escaldante. E em cada esquina havia sempre um vulto à espreita.

Dos três “subversivos” presenteados à agência, apenas o Pernambuco permaneceu. Conheceu uma jovem manceba casadoira, como diria Machado de Assis, dela se enamorou, casou-se e constituiu família. Fincou pé no torrão, sob os auspícios do sogro, próspero fazendeiro na região. Alcançou a aposentadoria, anos depois, por tempo de serviço. O Mineiro foi removido para outra agência mais distante – sem saber o por quê. Não vivíamos tempos de justificativas e explicações, mas sim de mando desmedido. Contudo, algum tempo depois, seu retorno às origens foi autorizado. Quanto ao Carioca, após inúmeras viagens à Brasília e ao Rio de Janeiro, sempre ofertando defesas, trocas de correspondências, algumas traziam alento às suas aflições, outras o conduziam mais ao fundo do poço, contudo, sem perder o entusiasmo e a alegria próprios do carioca da gema. Também para o Carioca, passado bom tempo (o tempo é o remédio para todos os males), quase que inesperadamente, chegou o dia em que uma energia qualquer vibrou no espaço e fez brilhar uma luzinha verde e, alguém na Sede, talvez penalizado ou à procura da Justiça, deferiu o seu pedido. Estava removido. Era o retorno, não à mesma agência de onde viera, e sim para outra, mas – importante - no seu estado natal. Era plena sua alegria. Era felicidade? Aristóteles, filósofo grego, dizia que a felicidade “era atividade de acordo com a virtude”. Esta o Carioca tinha de sobra. Era um virtuoso, merecia a plena felicidade, embora saibamos que essa plenitude é abrangente a momentos na vida de cada um. Naquele dia, o de sua despedida, o Carioca transpirava felicidade. Assim, ele fez questão de passar por todas as mesas e abraçar um por um todos os colegas, solidários que foram com a esdrúxula situação a que o submeteram. Comunicou a todos que, ao cair da noite, no clube, ofereceria uma cerveja e tira gosto a todos os novos amigos que fizera e que levaria com ele muito aprendizado e muita saudade. Como já disse, era, realmente, um “gentleman”, sem nunca deixar de ser um carioca.

Ao encerrar o expediente, todos saíram em direção ao clube. Muita alegria, característica do bom vivant, do carioca da gema, como costuma afirmar, risos piadas, gestos e música demonstravam o espírito que reinava naquele dia entre os funcionários. No auge dos festejos, o Gerente se levantou, fez tilintar algo no cristal e pediu silêncio, pois gostaria de dizer algumas palavras antes de se retirar. Enalteceu o espírito jovial, sua alegria e sua dedicação ao trabalho e, acima de tudo, sua capacidade de absorção dos problemas pelos quais passou, uma jornada interativa e de postura invejável, cabeça erguida a ostentar dignidade. Em nome de todos, desejou-lhe felicidades e lhe entregou um presente que todos os funcionários contribuíram para adquiri-lo, abraçando o Carioca afetuosamente.

Era a vez dele. Bem, disse ele, é a minha vez. Com um linguajar tipicamente carioca e gestos hilários, acentuando os “esses” e os “erres”, que sempre foram motivos de comentários, blindou a todos com palavras afetuosas, destacou características e particularidades, lúdicas e emblemáticas de cada um, agradeceu a todos pela acolhida e hospedagem, e colocou-se à disposição de todos em sua nova morada. Impressionou em sua fala ter citado o nome completo de cada um sem qualquer anotação para lembrar-se. Apenas de um, surpreendentemente, não falou o nome. Enquanto falava movia-se para todos os lados e abaixou-se pegando sob a mesa um embrulho que passava da mão esquerda para a direita em constantes movimentos. Explicou-se dizendo que retribuía o presente de todos recebido. Contudo, embora fosse seu desejo, por questões óbvias - o arrocho salarial - não podia presentear a cada um dos amigos que deixava. Por isso escolheu um funcionário que, para ele, era o protótipo do funcionário da casa, um símbolo a ser guardado no fundo do coração representando todos, por sua dedicação ao banco e aos seus colegas, que bem a todos representava, que não o mencionara até então para fazê-lo de forma mais efusiva e cordial pelo que, a ele Carioca, significava. Havia o escolhido para receber um presente em nome de todos, principalmente por sua dedicação e presença – após anos de ausência – na escola buscando melhor qualidade de vida. Apontou e chamou o Baixinho, do quadro de portaria da agência, primeiro pelo nome completo, depois pelo apelido. Acentuou ainda mais e propositadamente o seu linguajar tipicamente carioca, com um largo sorriso, falando sempre o abraçou carinhosamente e lhe entregou o embrulho. Todos atentos mentalmente pediam que o abrisse. O Baixinho virava o embrulho nas mãos sem saber o que fazer, embriagado pelas carinhosas palavras do Carioca. Foi ele que determinou: abres isso logo mano! Com um sorriso de orelha a orelha, o Baixinho foi soltando os papéis – quase uma dúzia – que se sobrepunham bem colados uns sobre os outros envolvendo a caixa, de fronte quadrada e comprida, sugerindo esconder uma garrafa. Desfeito o embrulho, debaixo de muitos risos e gozações, apareceu, bem moldada, a estampa da expressão de um artístico rótulo. O Baixinho, muito feliz, abraçado ao Carioca, debulhando seu contentamento, disse com voz embargada: UM WISKY, UAU!, muito obrigado, “cara”. Mecanicamente retirou a garrafa de dentro da caixa, ficou sério num repente, olhando ao seu redor, olhando novamente a garrafa disse espantado: ó Carioca?!, tá vazia cara!!!! Tai mano, respondeu o Carioca com todos os “erres” e todos “esses”: num é pra tu bebê não mano, não vou te levá pro vício não, isso é pra tu estudá, aprender a falar inglêis mano.

ANTÔNIO COLETTO
Enviado por ANTÔNIO COLETTO em 25/10/2017
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