O REFLEXO

No reflexo meio turvo das águas havia um esboço pálido que nem sempre esteve ali. Tive a impressão de que aqueles lábios um pouco distorcidos já haviam sido vistos em um tempo remoto, mas agora emudecidos me pareciam uma velha escultura de pedra, sem vida, sem cor e achei não servir para muita coisa, afinal o que acontecem com as esculturas depois de certo tempo? Numa leiga visão do assunto, diria que quando elas não se perdem em cacos pelo chão acabam como mobília empoeirada em algum canto da casa. Um retrato engessado que se perde no tempo...

Senti uma leve brisa deslocar cuidadosamente meus cabelos enquanto via no reflexo - agora ainda mais turvo pelo sopro de ar - o que se assemelhava a duas chamas azuis. Elas oscilavam incrivelmente sincronizadas, mas não pretendiam durar por muito tempo, elas não aqueciam e mal conseguiam iluminar algo, era preciso apertar os olhos um pouco para poder vê-las, triste sentimento me abateu de que em alguns instantes eu as veria se apagar por decreto...

Estranhamente pareceu-me que a figura ali parada me observava também, e diria talvez que olhava com certa curiosidade de criança inquieta quando descobre o mundo, eufórica as vezes e receiosa em outras. Não havia relógio por perto, mas senti que as horas fugiam de mim quando os raios do sol já não me queimavam mais as costas e quando o simples toque do vento passou a tremular as folhas nas árvores que reclamavam em coro enquanto algumas já secas se perdiam pelo ar.

Sentia que aos poucos a imagem se tornava apenas um borrão, apertar o olhos já não ajudava mais, alguns traços já haviam se perdido, e o que eu achava ser o brilho das chamas azuis era agora a claridade das pequenas estrelas que apontavam aos poucos no novo céu. Esperei o adeus que não demorou, as águas agora estavam negras como a noite e frias como já se esperava. Mergulhei minhas mãos sem saber o que me esperava no fundo, elas emergiram de volta umidecendo meu rosto. E enquanto as gotas do riacho escorriam aos poucos até encontrarem o chão, os meus olhos abriam-se vagarosamente encorajados pela luz que entravam por entre as frestas da janela do quarto, mais real impossível, e eu me perguntava o que seria este sonho?