Dois Cofres

Sua mãe faleceu no seu parto, um vazio que ele carregou por toda vida, mas sua história não começa necessariamente aí. Mesmo traumático, o fato em si não deveria causar estrago por tanto tempo, não fosse em sua juventude ter recebido do pai um tratamento estranho. Lembrava aquele livro do Foucalt, “Vigiar e Punir”. A semente do mal brotou nesses momentos, lhe rendendo uma característica insegurança. Com o tempo, chegou a se achar merecedor dela. Depois, por volta dos seus dezoito anos, se deu conta do como era querido por professores, amigos e colegas e resolveu se afastar do pai. Percebeu de modo mais nítido e claro o contraste entre sua vida fora e dentro de casa. Fora, era bem visto. Dentro, pisava em ovos. Conseguiu ingressar numa universidade pública no interior do estado. De início, voltava cerca de uma vez por semana para rever os seus. Porém, o envolvimento marcante com a nova vida acadêmica foi tornando essas voltas menos comuns. Ouve-se por aí que a felicidade não é direito de ninguém. Buscá-la sim. Tê-la gratuitamente não. Ele discordava disso, pois tinha no coração a forte impressão de que sem tanta miséria e desigualdade social imposta , ela seria conquistada de modo bem mais fácil, quase gratuito. Falando nisso, felicidade, creio que seus anos de universidade foram os mais promissores. Seu espírito voou livre durante todos eles. Era querido no campus, seguido por muitos. Eleito por duas vezes presidente do Centro Acadêmico, chegou a ser escolhido como representante dos alunos junto ao conselho universitário. O mote era bom e tudo levava a crer que nessas questões de felicidade, ele seria o protagonista da sua. Retomei notícias suas há cerca de três anos. Estava de passagem na cidade, vindo do interior. Segundo soube, havia se separado e tentava novas relações com mulheres mais simples, supostamente menos complicadas, mas ele, decididamente, não tinha sorte nas escolhas. O vazio crescente o fez adquirir novos hábitos. Mudou de uma cidade a outra, como um fugitivo. Buscava novos ares na esperança meio angustiada de que algo novo pudesse acontecer. Esse algo novo, penso eu, não veio, caso contrário não teria desistido, cortando profundamente os pulsos numa casa alugada num lugarejo minúsculo do interior. Deixou todo dinheiro que tinha aos seus cinco filhos, uma quantia razoável que havia guardado, capaz de mantê-lo ainda por um bom tempo, somada às poucas aulas que conseguia e os bicos que, vez por outra, arranjava. Entendo, dinheiro à ele era apenas um facilitador. Algo que o mantivesse vivo, enquanto não viesse seu bem maior. Amor e cumplicidade? Sim, creio que sim. Para muitas pessoas isso é vital, intrínseco ao existir, necessário. Meu mais profundo respeito a elas. Mesmo porque quem somos nós para julgar valores outros, nessa flagrante hipocrisia dos tempos modernos. Um brinde ao capital, o afetivo, capaz de ressuscitar vidas medíocres, dar-lhes sentido e perenidade. É como eu sempre digo, nenhuma história começa a partir do momento em que é contada. Nocivo ou não, há sempre algum detalhe que deixou de ser lembrado, algo involuntariamente esquecido. Apenas ele, o capital afetivo, é capaz de trazer tais coisas à tona, acionando gatilhos ainda em tempo de reverter um quadro ruim, uma pintura tosca, um vaso quebrado, um coração partido ou, enfim, o vazio. Creio que todos nós carregamos dois cofres em vida, um para afeto e outro para dinheiro. Eu vigio os dois, mas confesso que o primeiro pesa mais em mim..

GripenNG
Enviado por GripenNG em 24/11/2017
Reeditado em 14/05/2020
Código do texto: T6180872
Classificação de conteúdo: seguro