A TRAVESSIA DA BOIADA E OS JUROS DE MORA

A TRAVESSIA DA BOIADA E OS JUROS DE MORA

Antônio Coletto – 07-04-2017

Os atores, principais e coadjuvantes eram bancários e os fatos ocorreram na década de 1960, do século passado. Sendo aprovado em concurso público, foi nomeado para uma pequena cidade da Alta Araraquarense, no interior de São Paulo. Lá chegou no dia de São Francisco de Assis, 04 de Outubro. O ano era o de 1964. No ônibus (ou Jardineira) que o levou, poucas pessoas. O motorista anunciou o ponto final. Desceu e se viu na rua sem calçamento, poeirenta e envolvido por um calor abrasador. Não mais viva alma se via, nem o vento se atrevia, apenas o sol que castigava impiedosamente, a dar pena das flores do jardim que circundava a igreja matriz. Perguntou à recepcionista da agência da viação onde ficava a agência bancária em que deveria tomar posse. Gentilmente a menina, cheia de trejeitos regionais, explicou-lhe, de forma bem preguiçosa, talvez efeito da canícula do momento. Pegou sua malinha e pôs-se a caminho, não sem antes tirar o paletó e afrouxar a gravata, indumentária obrigatória para o banco. Três quarteirões abaixo, sob o sol de “estalar mamona” (expressão da época), se viu frente à casa bancária repleta de clientes da carteira agrícola. Um cara simpático o atendeu, virou para os demais funcionários e disse: carne fresca, gente nova no pedaço, e levou-o à presença do gerente.

Apresentado, um homenzarrão de porte bem avantajado o convidou a segui-lo dizendo-lhe: você começa agora. Na presença do subgerente - na época também chamado de contador - o cara que administrava o pessoal e a contabilidade da agência bancária. Este, imediatamente, após instruções, conduziu-o a uma mesa, desalojou dela o funcionário e o determinou que lhe ensinasse e lhe passasse o serviço. Duas horas depois se viu sozinho com a mesa cheia de papéis, as portas da agência se fechando e ele com a obrigação de fechar o movimento do dia na carteira de cobrança. Com a ajuda de funcionários da casa concluiu o seu primeiro dia de bancário. Um colega, pouco amável, falava pouco e de sorriso difícil, apresentou-o no Hotel. Conversaram e ele aceitou partilhar o quarto (era segunda-feira, o hotel estava lotado) com o estranho que iniciava sua carreira de bancário naquele dia. Por ser de pouca conversa o parceiro, teve de descobrir os seus hábitos para respeitá-los, adaptando-se ao seu modo de viver para não criar qualquer atrito.

O amanhã era outro dia. Lá estavam na agência a iniciar a nova jornada. Do balcão, com um papel na mão, veio o cara simpático que o recebera. Lembrou de todas as brincadeiras e pegadinhas dedicadas ao calouro no dia anterior colocando-o à vontade e passou-lhe o papel dizendo: para pagamento. Com os dados às mãos buscou no arquivo e, com muita dificuldade, encontrou o título e todas as suas fichas para enviá-lo ao caixa. Juntados todos os papéis (ficha registro, ficha do sacado, ficha do caixa e título), devidamente preparados e carimbados, depositou-os no aparador sobre a mesa do Ajudante de Serviço - chefe do setor - e continuou seus afazeres.

Absorto nas tarefas a desempenhar, ainda confusas e desconhecidas, sob raciocínio e percepção para não errar, percebeu em pé ao seu lado o nissei (filho de imigrante japonês) de gravata borboleta azul claro com florzinhas vermelhas: era o chefe. Pois não, lhe disse o novato: precisa mais atenção no serviço, lhe disse em tom admoestador; o título está vencido e as instruções são claras, olha aqui, o número 34, no verso: vencido?, cobrar juros de mora. Despejou a papelada sobre a mesa e se retirou. Aflito, ajuntou os papéis que se espalharam sem saber o que fazer. Parou, pensou, lembrou das apostilas, dos livros nos quais estudou ao preparar-se para o concurso e rememorou todos os cálculos dos juros. Mas, qual a taxa a ser aplicada nos cálculos dos juros de mora? Revirou as gavetas para ver se havia alguma anotação, qualquer instrução, mas nada encontrou.

Foi ao chefe: Chefe, qual a taxa a ser aplicada nos cálculos dos juros de mora? É só calcular, aplicando o multiplicador fixo, lhe respondeu. Lembrou das anotações deixadas pelo colega que lhe passara a carteira. Lá estavam vários multiplicadores e divisores fixos, cada um para uma taxa. O problema não estava resolvido. Qual a taxa e respectivo multiplicador a serem aplicados nos cálculos dos juros de mora? Voltou ao chefe: preciso saber a taxa a ser aplicada, chefe. Que taxa? A dos juros de mora! – O Bolão, atende lá, no balcão, gritou o chefe. Ele, o novato, parado a esperar, como o Pedro pedreiro que esperava o trem, e a mulher dele, para esperar também, esperava um filho pro mês que vem. Você?, perguntou ao neófito, ah! a taxa dos juros de mora. Sem mais nada dizer, saiu deixando-o plantado ao pé de sua mesa, e com cara de tacho. O cliente, que aguardava o título no caixa, esperava também, para não deixá-lo desolado. Sua figura naquele momento demonstrava transtorno. Os olhos do cliente sobre ele, a interrogar-lhe: e daí?, cara!

O chefe do setor de financiamentos agrícolas, ao perceber seu constrangimento, lhe perguntou: tudo bem?, o que está acontecendo? É que preciso saber a taxa a ser aplicada nos cálculos dos juros de mora e ninguém me dá essa informação, respondeu. O ninguém foi um apelo. Com um sorriso maroto nos lábios, fazendo-o lembrar-se das pegadinhas e das brincadeiras do primeiro dia de trabalho, lhe perguntou: e para que você quer saber a taxa dos juros de mora?

O neófito ficou vermelho, surpreso com a pergunta. Contudo, respirou fundo e, serenamente lhe respondeu: sabe chefe, é que tem uma boiada lá em São Miguel do Araguaia, em Goiás, que precisa atravessar o Rio Araguaia para chegar a Barra do Garça, no Mato Grosso e de lá ser embarcada para São Paulo. E daí, disse o chefe, o que tem a boiada a ver com a taxa dos juros de mora? Sabe chefe, respondeu, aí me disseram que a pessoa que sabe a taxa a ser aplicada nos cálculos dos juros de mora aqui na carteira de cobrança, é a mesma que conhece uma reza “braba” que afasta as piranhas do rio pra boiada fazer a travessia sem perder nenhuma cabeça, e muito mais rapidamente. Preciso saber quem é essa pessoa para me ensinar essa reza, para a boiada fazer a travessia do rio sem utilizar o abominável truque do “boi de piranha”, onde o boi e o dono da boiada saem perdendo.

O chefe, ao novato virou as costas e saiu pisando duro, sem nada dizer. O neófito, sem a informação e à mercê de represália, sentou-se pensativo a imitar Monnet, com a cabeça na mão direito e cotovelo apoiado à mesa. O nissei voltou roçando sua mesa e jogou sobre ela um bilhete. Nele estavam as taxas, os multiplicadores e divisores fixos aplicáveis a cada uma das mais usuais operações bancárias à disposição da clientela na Agência e, logicamente, aquela aplicável nos cálculos dos juros de mora na carteira de cobrança.

Passaram-se seis meses sem que o chefe da Carteira Agrícola lhe dirigisse a palavra. No último dia de expediente antes da Páscoa, no ano seguinte, no encerramento da jornada diária, o novato percebeu uma máscula mão deitar as cinzas do cigarro em seu cinzeiro. Olhou timidamente e sentiu a pesada mão sobre meu ombro e ouviu a grave e soturna voz do chefe agrícola inquiri-lo: como é? Conseguiu atravessar o Rio Araguaia com a boiada sem a perda de nenhuma cabeça? Oh! Chefe, respondeu-lhe: aquilo são águas passadas. Águas passadas não voltam, disse, ou, voltam, questionou?. Não movem mais moinhos, chefe!. Ele sorriu sem nada dizer, mas o novato continuou: agora, chefe, você é quem está com um tremendo problema! O que? Qual? Perguntou-lhe meio aflito. Vê aquele rapaz no balcão?, respondeu esclarecendo: é funcionário do Banco do Povo, quer falar com você, está dizendo que você prometeu ao chefe dele e ele veio buscar, emprestada, a maquininha de extrair saldo. Olha só, negativo e positivo. Que é isso?, disse, pô, pô, vocês, pô...

ANTÔNIO COLETTO
Enviado por ANTÔNIO COLETTO em 29/11/2017
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