O DEBOCHADO

O DEBOCHADO

Antônio Coletto

O ponto de encontro da moçada daquele canto do bairro era o bar do Clidão. Era uma juventude quase certa e especial. A exceção ocorria, vez ou outra, com a presença de gente de outros cantos. Contudo, todos, estes e aqueles, eram muito ligados ao irmão do dono do bar. O Clidão era figura ímpar, sisudo, sistemático. À noite deixava o bar por conta de Iris, o irmão. A garotada do canto se reunia ali, no bar e, quando o Zumão estava presente, a festa tornava-se plena. O cara dedilhava o seu violão e o Iris, servindo a freguesia, entre uma cerveja e outra, ao som do violão, deitava a cantar as mais belas canções dos imortais Chico Viola (Francisco Alves), Orlando Silva, Sílvio Caldas e Nelson Gonçalves, - vez ou outra de outros cantores. E quando nos cinemas projetavam alguma das chanchadas da Atlântida, e nas telas apareciam Francisco Carlos, Rui Rey e sua orquestra, Ivon Cury e o vozeirão de Jorge Goulart, o Iris e o Zumão reprisavam os seus sucessos.

O boteco do Clidão era famoso devido aos salgadinhos feitos por D. Sofia e Nelita, sua filha, mãe e irmã do Iris, o mais novo da família e, no bar, aquele que fritava os salgados para vender e servia aos fregueses, entre uma música e outra. Embora famoso devido aos salgados, agora, outro ingrediente alimentava essa fama: tornou-se o ponto de encontro da moçada do recanto. O Zumão – seu nome era Zulmiro, mas todos o conheciam pelo apelido - sempre presente, com seu violão. Não alimentava esperanças, apenas se divertia, mas se ausente, o Iris soltava a voz à capela e ganhava aplausos da mesma forma. Por volta de 23,00 horas, aos sábados, chegava o Clóvis, sujeito simpático, mas às vezes arrogante e prepotente, a depender do humor. Ostentava estatura média e uma obesidade mórbida, por volta de 120 quilos. Toda vez que aparecia no boteco alguém brincava com ele: “e aí, Clóvis, tá perdendo a barriga, tá caindo pra fora das calças”. Brincadeira que absorvia sorridente, levava numa boa, no gogó e, quando em vez, respondia: “engraçadiiinho”. E a cantoria continuava e o Iris, principal intéprete, desfilava os sucessos do momento. De quando em quando, os jovens mais atrevidos expunham suas habilidades vocais. O Zumão, debaixo de seus cabelos brancos, desapegado das coisas mundanas, com a paciência ganha dos céus, com olhar sereno os acompanhava dando o som de fundo à voz que se mostrava. Na maioria das vezes Zumão parava o acompanhamento e corrigia o cantor: você desafinou nesta estrofe, atravessou neste acorde, perdeu a melodia neste compasso, intervenções que nem sempre eram bem recebidas. E quando isto acontecia, o Iris serenava os ânimos, deixava a frigideira aos cuidados de outros e mostrava como devia ser feito. É isso aí, confirmava o Zumão, seu maior fã. - O Boteco tornara-se a sede do fã-clube do Iris.

O sábado, como acontece em todos os quadrantes do mundo, sempre chega depois da sexta-feira. Óbvio. Chegou aquele, e nele, no horário de sempre, o Clóvis. A turma já estava reunida e o Iris cantava: quem quebrou meu violão de estimação, foi ela; quem fez do meu coração seu barracão, foi ela. Encostado no umbral da porta, o Clóvis ouvia, não com o entusiasmo costumeiro, mas terminada a canção, e após o violão ressoar o último acorde ele, com um sorriso estranho deu vivas e palmas ao cantor, momento em que todos o perceberam. Como sempre fora conversador, porém mordaz, muitas vezes arrogante e prepotente, sem deixar que suas más qualidades ofuscassem a simpatia que, a alguns, inspirava. Houve um instante de suspense e olhares se cruzaram no espaço, superado quando pediu uma cerveja. Logo após veio outra, a causar surpresa, pois não costumava beber. Depois da segunda veio a terceira a aumentar o teor alcoólico que o fez soltar a língua. Enquanto o violonista tomava um fôlego, Clóvis abriu o bico e passou a contar suas façanhas da noite.

Revelou que voltava da casa da noiva onde havia batido nela, dado mais de uma tapa na cara para aprender a obedecer quem manda. Proclamou-se mandante na casa da noiva. Não disse qual o pecado dela para merecer o castigo. Contou, ainda que, à intervenção do pai e da mãe - seus futuros sogros – houve por bem lhes aplicar um corretivo. À mímica demonstrou uns tabefes e perguntou: vocês entenderam, não? Completou dizendo tê-los deixados no chão a contorcerem, e finalizou: bati em todo mundo, até na irmã e no irmão mais novo. Tem de saber quem manda.

Iris, indignado, questionou: o que está falando cara, bateu na noiva? Confirmou a fazer deboches: bati mesmo, tem que respeitar!. Não é a primeira vez que apanham e não aprendem, replicou. Você não tem vergonha de fazer e dizer coisas desse gênero? Que é isso malandro, retrucou o seresteiro. Enquanto a conversa fluía, inclusive com a censura do Zumão a atos tais, um dos jovens começou a cantar: vagabundo que na minha cara der, tem que fazer testamento e se despedir da mulher; se tiver filho, deixa uma recordação, pois cara que mamãe beijou, vagabundo nenhum põe mão, não, não. O final foi acompanhado de risos e palmas. Na ponta do balcão, um cara bem vestido, aparentando 22 ou 23 anos bem vividos, bem perfumado, com o cabelo brilhando à base da brilhantina aplicada, ouviu toda a história do Clóvis, abanou a cabeça e saiu decepcionado com a humanidade. Que espécie de homem faz coisas assim, martelavam seus pensamentos. Porém, ao alcançar a esquina, deu de cara com a viatura da polícia que, costumeiramente, fazia a ronda no bairro. Indignado com a história ouvida, não titubeou, parou a viatura e contou aos policiais a história ouvida. A viatura parou bem em frente ao bar e o policial perguntou por um “tal” de Clóvis. Apontado, quis dele ouvir o relato do espancamento da noiva e de sua família. Clóvis, sarcasticamente, quis engodar os policiais e desmentir os fatos narrados, mas o homem da brilhantina, num sorriso portenho, a Carlos Gardel, afirmou o que ouviu e, ainda, pôs todos os presentes no rolo, ao revelar terem ouvido a mesma história. O Zumão a todos representou: confirmou e solidarizou-se com o homem da brilhantina, demonstrando sua indignação. O Iris não teve saída mais honrosa, também confirmou. Os dois policiais, diante das revelações, colocaram o Clóvis, o Zumão e o homem da brilhantina na viatura e rumaram para a casa da família ultrajada.

Numa rua de chão batido, no bairro contíguo, na casinha modesta ainda havia luzes acesas, apesar do adiantado da hora. O policial foi atendido por uma meninota chorando. À pergunta respondeu que a mãe não estava bem, foi agredida pelo noivo da irmã. Enquanto narrava os fatos, seu rosto se transfigurou ao ver Clóvis descer da viatura; desesperou-se a demonstrar enorme pavor. Calma, confortou-a o policial a perguntar sobre a mãe. Disse que recebeu o farmacêutico que lhe fez um curativo, pois feriu-se ao bater na mesa quando caiu devido a agressão sofrida do gordo que desceu do carro. Falou ainda que ele era o noivo da irmã; que ele bateu em todos da casa. A noiva, à demora da irmã, veio saber quem os visitava. O policial, obedecendo às instruções para abordagens, entrou sozinho. Ao confirmar das agressões, elaborou o Boletim de Ocorrências e determinou que todos se preparassem, pois deveriam acompanhá-lo à presença do Delegado para prestarem depoimentos. Pelo rádio da viatura pediu outra, para conduzi-los à Delegacia.

Ao Delegado de plantão relataram, com detalhes, todo o ocorrido. A noiva, ao contar as repetidas agressões sofridas por ela e toda a família falava que o Clóvis era um debochado, mas ela o amava, não fazia conta dos deboches dele, pois o amava muito. Contou que as agressões sucediam ao serem seus deboches repelidos, pois que, na frente de seus pais, ficava a pegar nos seus peitos, a abrir sua blusa, a enfiar a mão por baixo de seu vestido, olhava para os velhos e dava risada. É um debochado Doutor, confirmou. Ao ser admoestado por ela e seus genitores, se enfurecia e punha-se a bater em todos, até mesmo em quem nada fizera, como a irmãzinha.

Veio a oitiva do delinqüente – assim o chamou o Delegado. Ele desmentiu a todos. Disse tratar-lhes como mereciam. À intervenção do futuro sogro, mandou que calasse a boca se não lhe dava na cara. O Delegado, diante da repreensão de Clóvis ao velho, esboçou maroto sorriso. Então você é valentão, perguntou-lhe o Delegado. Não, não é isso Doutor, é que, se a gente deixar, todo mundo monta na gente. Não sou cavalo de ninguém, o senhor compreende, a gente tem que ir educando desde o namoro. Cara, não compreendo não, respondeu o Delegado. Você pensa assim mesmo ou é mais um deboche?, continuou a Autoridade e, aos policiais, determinou que levassem Clóvis a conversar com um seu amigo que o esperava na sala contígua. O Delegado e os policiais trocaram olhares insinuantes e maliciosos, a revelarem que nessa sala cantavam e choravam os valentões e todos os demais delinquentes. A noiva, ao ver o noivo sendo levado onde ela não o podia ver perguntou: que vão fazer com ele, e debulhou-se desesperadamente em lágrimas, dizendo: ele é debochado mas eu gosto dele, eu gosto dele, eu amo ele Doutor!. A senhora gosta dele ou de apanhar?, retrucou severamente o Delegado. A expressão da moça respondeu a pergunta. As lágrimas banhavam seu rosto ovalado, ornamentado pelos olhos verdes e a boca rubra de batom acentuado. Ela, após levarem o pilantra, não conseguia articular palavras, tal era o seu pavor. A senhora gosta mesmo desse saco de banha, disse o Delegado. Vou ver o que posso fazer. Tanto amor dessa menina desperdiçado por um, um saco de banha imprestável, agressor inveterado, resmungou indignado o Delegado, olhando para os familiares que também choravam em solidariedade à filha e à irmã. Não chore mais, disse o velhinho ao consolar e abraçar a filha, repetindo o gesto a mãe e os irmãos.

Poucos minutos depois, os policiais trouxeram o debochado quase pendurado em seus braços. Zumão e o homem da brilhantina contaram que ele veio chorando e a demonstrar pavor dos policiais. Estava seguro por que, se não o estivesse, cairia. Sentaram-no à cadeira em frente ao Delegado que, de imediato, lhe perguntou: e então? Cabra valente! Conheceu o amigão? Com os olhos baixos, expressão de dor no rosto, incomodado ao sentar-se e sem coragem de encarar as pessoas, a noiva e seus familiares principalmente, desviou os olhos timidamente, repugnou o cassetete de um dos policiais, enquanto tentava ajeitar-se na cadeira.

Levanta a cabeça, olha pra mim, gritou o Delegado, deixando todos na sala temerosos. Clóvis, furtivamente, ainda observando o instrumento de trabalho do policial, apoiado apenas por uma das pernas na cadeira, com lágrimas a deslizar pelo rosto, tímida e envergonhadamente olhou para o Delegado. Olha nos meus olhos, o valentão! Leia este papel. É um compromisso. Você vai assiná-lo. Nele você se compromete - comigo e com a Lei - que nunca, jamais em sua vida vai levantar a mão para quem quer que seja, principalmente, para sua noiva e familiares. Caso contrário, terá que ver comigo: ponho você morar lá, com o seu amigão, onde cantam e choram os valentões como você. Tempo depois, cara, você sai de lá fininho, fininho, - perde toda essa banha que carrega. Pelo amor de Deus, Doutor, não faz isso comigo não, eu não mereço, observou Clóvis choramingando. Bom, depende de você. Assina ou não? Valentão de uma figa, replicou o Delegado. Tua noiva te ama, cara, não sei o que ela viu em você, mas te ama. Aproveita a chance, emenda-te, vira homem de verdade, disse em tom imperativo o Delegado.. Claro, Doutor, claro, eu assino, eu prometo, prometo sim, disse o pilantra receoso por ver o cassetete do policial em suas mãos e, deverasmente, muito envergonhado.

Já era madrugada quando, dispensados, as viaturas os levaram para suas casas. Até mesmo o Clóvis, que mal podia andar – sem que ninguém soubesse o motivo - foi conduzido, de retorno, a sua morada. Ao despedir-se de Ana Maria e os seus, o fez muito respeitosa e carinhosamente. Daquele dia, nas inúmeras vezes que parou no boteco do Clidão, nunca falou sobre a fatídica noite e sempre se comportou como verdadeiro cavalheiro, e jamais revelou o segredo da sala do amigão e nem quem era ele.

O noivado continuou e Clóvis se casou com Ana Maria da Penha e o casal passou a morar com os pais dela. Contam as boas e as más línguas, que foram felizes para sempre.

Uberlândia MG, 15-11-2017.

ANTÔNIO COLETTO
Enviado por ANTÔNIO COLETTO em 29/11/2017
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