No fim do dia

No fim do dia




Pensamentos borbulham rápidos como soluços. O dia não acaba sem nicotina na varanda, vez ou outra pondero se paro de fumar ou compro um cinzeiro adicional. Três da tarde tudo estava diferente. Preciso levar essa tesoura na feira, para afiar, preciso de cúpula para o abajur, o estoque de bananas dura até terça, as janelas da sala carecem de um limpa janelas, não haveria de ser um limpa pedras. Sou muito parecido com o Einstein, pois ele insistia em comprar uma mistura de fumos numa bodega cujo dono foi espancado pelas milícias, raça inferior, diziam os brutos.

No fim do dia urge uma história bem contada. Outras vezes, é um pensamento ou uma maneira habitual de ser, aprendido no início do dia. No meio do dia almoço, uma coisinha aqui, outra ali, e se não tomar um expresso até então fico no modo comatoso, flores não brotam, o significado ganha distorção, insetos não se movem. Em 1900 Korsakov escreveu O Vôo do Besouro. A primeira vez que ouvi isso, uma gravação dos anos 60, flutuei nas maravilhas que o ser humano pode criar, quando não está enredado em asneiras. Einstein achava o nacionalismo o cúmulo da infantilidade. Já o brother Nikolai Rimsky-Korsakov era um nacionalista roxo. Se eu entendi direito, neguinho não saiu tocando ”Flight of the Bumblebee” de cara. Tem dias que eu não entendo nada e minha grande virtude é estar tão calejado com essa situação que a única coisa que eu espero é o fim do dia, para ruminar. Também sou muito parecido com o Milan Kundera, afinal nem ele, nem eu, ganhamos o Prêmio Nobel. E há mais um pormenor, de tanto a inhaca cívica se revolver nos recônditos do meu cerne, eu bem poderia ter escrito: “Édipo matou o próprio pai, sem saber que se tratava de seu pai, e dormiu com sua mãe, igualmente desconhecendo esse fato. Quando tomou ciência ficou tão horrorizado que arrancou os próprios olhos. Ora, nossos governantes alegam que não sabiam de nada sobre a matança de milhares de inocentes, mas quando ficaram sabendo não se sentiram culpados e, pior, ainda estão no poder”. Poderia - Futuro do pretérito, algo para ocorrer adiante, tipo de coisa que transita na minha cabeça no fim do dia. A diferença decisiva entre eu e os citados repousa na magnitude das minhas ações cotidianas que praticamente me impedem de redigir interlúdios musicais, teorias acerca da relatividade ou romances mundialmente aclamados. Amanhã devo ir ao sapateiro para resolver a questão do cadarço do tênis de andar na chuva. Esgarçou. O homem pretende me vender dois, embora eu precise apenas de um. Estamos em tratativas há uma semana, saímos da esfera da discussão para a negociação, ademais, o estoque de limões está por um fio, no caminho vou passar pelo mercadinho, o que me permitiria adquirir as bananas junto com os limões, e, como você bem pode atinar através desses miraculosos raciocínios, Deus mora nos detalhes.

Ai, ai, entra dia, sai dia, a única coisa que pode se dissolver repousa no sentido ilusório a ela atribuído.

Também realizo aritmética perceptiva quando o sol se põe. Hoje conclui ter sido testemunha durante cravados 30 anos e uns quebrados que 100% das pessoas falavam ióga (o acento aí serve para explicar a sonoridade). Palavra de honra, de 1970 a 2002 falava-se: minha mãe está na ióga, Claudinha faz ióga, Benedito frequenta o curso de ióga, ali na esquina tem aula de ióga, tia Úrsula lê tudo sobre ióga. De repente, no alvorecer dos anos 2.000, absolutamente todas as pessoas pronunciam iôga (de novo o acento exemplificando o som). Filha, onde você estava? Na iôga. Minhas amigas praticam iôga, minhas tias amam iôga, iôga faz bem para os rins, meus músculos melhoraram em virtude da iôga.

Difícil explicar um fenômeno dessa monta.

O dias também são fenomênicos e quando eles acabam uma boa conta significa vivê-los criando algo, e não lutando contra algo.
Sim, é largamente sabido, o ego reage, o coração responde e da minha janela pondero que a sincronicidade anda substituindo a lógica.

Cada época da vida teve seu ciclo particular no que tange ao encerramento dos dias. Já os cortejei do alto, tendo o mar como companhia, do subsolo, espremido num metrô, num campinho de várzea com o suor escorrendo no rosto onde um canto de olho divisava a primeira estrela, o outro canto de olho se esquivava de uma bolada, em casas que não eram minhas, umas gostaria que fossem, outras não, em ruas estranhas, tão estranhas que não deixaram memória, em mesa de boteco, mais de um boteco, nos braços de um grande amor, que só tiveram valia porque foram poucos, se fossem muitos virariam água de chuva que me surpreendeu no crepúsculo, escorreu pelo corpo e entrou no bueiro. Não nasci para centenas, mas para distintas unidades que me acenderam e eu a elas, perfeitamente, como os dígitos premiados da loteria, os três mastros nas caravelas, as 12 notas musicais, o encontro sem data ocorrido na hora certa.

No fim do dia, o sopro, além do cansaço acolhedor que me abraça certas noites me poupando das incógnitas vorazes. Às vezes, porém, o próprio processo de indagação atiça respostas e quase posso tocá-las com as pontas dos dedos. E assim, num moto-contínuo que clareia e escurece sem ponto de partida ou de chegada, apenas se estende de uma metade a outra metade, coisa um tanto elástica e hipnótica, concluo que a vivência de hoje me levará aonde me levou a vida inteira: para mais um dia. Por hora julgo mui apropriado encerrar essa crônica com uma pertinente frase de efeito: o Universo somente cria aquilo de que é feito.


(Imagem: Sunset by Félix Vallotton  - 1865 - 1925)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 02/12/2017
Reeditado em 01/06/2020
Código do texto: T6188232
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