A Ressaca

A cachaça num copo sobre a mesa, transparente como água cristalina, estática, silenciosa, nenhum atributo que pudesse levantar a menor suspeita acerca de seu potencial.

O primeiro gole. O amargo na boca seguiu-se de uma quentura latejante pelo esôfago e um rubor instantâneo que pareceu incendiar toda a face.

De gole em gole o riso foi ficando fácil e as palavras foram se descolando da língua travada do dia a dia.

Dali a pouco não se reconheciam rancores, desafetos ou antipatias . Como num passe de mágica todos eram como irmãos e amigos da mais remota infância, unidos e comprometidos num único objetivo de rir à toa.

E as horas voaram como jato, as impressões foram ficando cada vez mais embaçadas, e sumindo, sumindo, até que me vi às portas do inferno.

Num misto de euforia e aflição, apertei educadamente a mão o diabo e iniciei uma tentativa de fuga pela tangente, mas aquele que não perdoa jamais seus devedores e os cobra com rigor tenaz, puxou-me de volta e com um sarcasmo horrendo me lascou a sentença: - Vais ficar aqui por um longo tempo, meu caro!!! Volta já!!! É meu direito.

-Não, não!!! Quero voltar. Isso aqui não é pra mim. Até nunca mais, repliquei com um ar de queixume totalmente ineficaz.

E como já é sabido, a determinação do capiroto é algo assombrador.

- Cumprirás uma jornada longa aqui hoje, sob os meus cuidados. Pensas que é assim tão fácil?

- Não penso nada. Quero apenas voltar ao meu estado de normalidade, que é o meu estado legítimo e como realmente gosto de ficar. Insisto.

- Dei-lhe as dádivas do riso fácil, uma porção de amigos instantâneos a abraçá-lo, elogiá-lo, a cantarem juntos por horas. Usufruístes dessas delícias sem pestanejar. Agora venho cobrar a minha paga.

Então, imediatamente, uma espécie de rebelião começou a se manifestar na região visceral. O estômago, aturdido pelo conteúdo anormal a que está acostumado, precipitou um processo de rejeição violenta a tudo o que lhe foi oferecido durante a farra da bebedeira. E ali iniciei a peregrinação rumo ao martírio, ao castigo lento, sofrendo os males daquela estadia forçada na terra dos enjôos, da azia, das dores de cabeça pulsantes, dos pensamentos confusos de arrependimento e pedidos de perdão ridículos aos que de fora assistiam à cena.

Terra mais sem gosto, terra sem sabor, de sofrimento lentíssimo e contínuo, sem intervalos de alívio, sem nenhuma compaixão, abismo para onde todos os bêbados são jogados e abandonados a si mesmos por um tempo que parece infinito.

Relógio preguiçoso, como que um instrumento daquele que condena, nada fez para aliviar as minhas angústias. Ao contrário, para piorar o sofrimento, parecia potencializar seus "tic tacs" que mais se assemelhavam a marteladas desfechadas pelos demônios das cefaléias.

E o torturador se degustava da desonra do afligido, puxando-me o quanto podia para mais um degrau abaixo da indignidade humana, como se ali, posto caído no chão do banheiro molhado pelos líquidos regurgitados das entranhas não fosse ainda o último nível.

E é em momentos como esse que todo pecador se lembra de Deus, e em ato desesperado para fugir da aflição que lhe parece eterna, começa a balbuciar palavras de humildade e a lançar a súplica dos bêbados arrependidos e ultrajados. E assim o fiz:

- Valha-me, Deus!!! Oh, protetor e bom conselheiro! Resgata-me da fúria dos fígados rancorosos e vingativos. Dá-me livramento imediato. Se assim fizer, prometo-te, prometo-te, prometo-te... NUNCA MAIS BEBER!!!