Um devaneio autocentrado

Eu aparava as unhas dos meus pés com uma tesoura cega, enquanto eu imaginava ela andava pelo quarto reclamando do quão quente estava a noite, e por alguns instantes era como se aquilo não fosse algo da minha cabeça e sua presença fosse real.

Estava realmente um mormaço, o que era típico de janeiro. O ventilador rugia enquanto jogava um pouco de vento quente sobre mim e quebrava o silêncio do ambiente. Recolhi as unhas e joguei no vaso sanitário. Não pude escapar dos meus próprios olhos no espelho, me encarando com desgosto, mas os ignorei.

Aproveitei a estada e cortei alguns fios salientes da barba, como se aquilo fosse fazer alguma diferença. Tentei armar algum sorriso no rosto, mas me senti apenas idiota. Apaguei a luz e voltei para o quarto. Uma das minhas gatas ressonava sobre a cama, como se fosse dona de todo o espaço. Ela achou ruim quando a retirei de cima da camisa que eu pretendia usar e saiu em direção a rua.

Bati os pelos da camisa e terminei de me vestir. Me certifiquei de ter pego carteira, celular e chaves e saí de casa. Esbarrei com minha vizinha de baixo e mais um de seus namoricos. Ela me olhou de cima abaixo, como se se perguntasse para onde eu ia.

Seguimos em caminhos opostos, mas eu podia sentir seus olhos nas minhas costas.

O ar do lado de fora era flagrantemente mais fresco do que dentro de casa, o que me fez me sentir melhor, apesar de eu nem sempre me sentir bem em espaços abertos. Eu tinha me acostumado com meu confinamento auto-imposto, de uma forma que eu sempre em sentia estranho quando não estava em casa, ou no meu quarto. Acho que isso é algo ruim de se sentir quando se tem trinta e poucos anos. 31, no meu caso.

Não tenho muito o que falar sobre mim que seja realmente necessário de se dizer, nem sei se conseguiria explicar claramente o que me motivava naquele momento. Mas eu precisava tirar certas coisas da minha cabeça. O álcool certamente ajudava, quando não em demasia. Beber demais sempre deixava tudo pior do que estava antes, e era realmente difícil saber o limite entre as duas coisas. Além do álcool eu sabia que precisava ver gente, conversar, ouvir... sentir algo diferente. Como eu tinha me acostumado a fazer em outros tempos.

Subi num ônibus e fui até o centro da cidade, andei de bar em bar até que topei com alguns rostos conhecidos.

Troquei alguns sorrisos e sequei algumas garrafas, mas não parecia suficiente. Eu ainda me sentia preso ao quarto. Parte de mim queria voltar e assistir algum seriado idiota até dormir.

A verdade é que ali não havia nada que eu já não tivesse visto ou sentido. Não haviam conversas que eu já não tivesse ouvido ou idéias que eu não tivesse compartilhado. Era sempre um pouco mais do mesmo.

Nem sequer me dei o trabalho de flertar.

Não havia desejo em nenhum lugar em mim.

Só vazio. Um vazio que não dava para preencher com cerveja.

Desisti daquilo.

Andei até o porto, como já havia feito centenas de vezes nos últimos anos. A brisa do mar me causava arrepios e aumentava minha tensão. Tanto pelo fato de que eu me sentia castrado criativamente, quanto pelo risco de ser assaltado a cada esquina que eu cruzava. Qualquer um que tenha vivido numa cidade grande sabe do que eu estou falando, principalmente quem cresceu em Recife.

Eu estava lá, apreciando aquela velha trip. Aquela velha sensação de dar de cara com o passado misturado com o presente que só o Recife antigo é capaz de oferecer.

Lembrei do meu delírio no quarto enquanto cortava as unhas. Eu era um cara assombrado. Assombrado por lembranças e arrependimentos. Eu era um reflexo da cidade, presente e passado, numa briga eterna que não dava espaço para algum futuro.

Imagino o tédio que deve estar sendo ler tudo isso sobre mim sem que eu chegue a lugar algum. Mas eu cheguei. Dei de cara com o mar, o porto e a madrugada. Peguei uma cerveja com um vendedor ambulante, - Que Deus o abençoe – e voltei para a minha contemplação do encontro do mar com a imundice de Recife, trazida pelo Capibaribe. Apesar do mar diluir toda aquela sujeira, eu tinha impressão que no longo prazo, o oceano atlântico ia terminar levando a pior.

O tempo faz coisas estranhas.

Não deixa pedra sobre pedra.

Eu estava ali, com uma sensação de que não havia um objetivo claro na minha vida, da mesma forma que me sinto com esse texto, mas ainda assim eu estava disposto a continuar andando, assim como continuo a jogar palavras no papel.

Engraçado me ver escrevendo isso, e pensar que existe alguma correspondência entre o que eu vivo e o que eu escrevo. Engraçado que eu seja tão autocentrado assim, que deixe pedaços de mim no papel, mesmo quando quero fugir desse clichê.

Pensei mil vezes em pular na água e desaparecer junto com o lixo da cidade.

Pensei mil vezes em rasgar todas as páginas que eu escrevi e mandar pelo ralo, ou para o lixo.

Penso todos os dias em silenciar meus dedos, e os pensamentos que eu não queria ter... mas sinceramente não é meu estilo.

Me perdi nessa viagem e só retornei a mim mesmo quando o sol rasgou o horizonte.

Eu estava de cara... sóbrio... vivo e morto ao mesmo tempo, me perguntando se tinha valido à pena sair de casa.

Voltei para ela, mais contemplativo do que quando havia saído.

Talvez não houvesse nada de novo para se experimentar.

Até que simplesmente acontecesse algo novo.

Decidi pagar pra ver... mas por enquanto, eu ia dormir...

sem despertador para me acordar.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 04/01/2018
Código do texto: T6216377
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