O DOM DE MALAQUIAS

O DOM DE MALAQUIAS

Era homem simples, sem vícios que maculassem sua vida de exercente de serviços gerais. Não conheceu sua família. Foi criado por alguém que se apiedou de uma criança sem eira nem beira, que passava fome, largada ao “Deus dará”. Deus, antes de alguém, dele se apiedou e essa pessoa, da qual nunca revelou seu nome, criou Malaquias. Seu nome, copiou de um preto velho que o benzeu quando teve sarampo e o abençoou, predizendo-lhe uma missão, a qual nunca revelou, quando completou sete anos de idade. O teto que ganhou de alguém, manteve-o até quando se compreendeu homem e livre, saiu para buscar, nas aventuras que o mundo ofertava, tudo o quanto desejava e queria.

Seu nome de família, aquele recebido de alguém, jamais revelou. Quando questionado a respeito respondia com outra pergunta: pra que ocê qué sabê?, ou, por que você gostaria de saber?, dependendo de quem perguntasse. Meu nome é meu nome e é só Malaquias, se fala e se escreve igualzinho ao do preto velho, que escolhi de vontade própria, sem influência nenhuma. Confirmava sua resposta olhando firme e profundamente nos olhos do inquisidor a ponto deste, por motivo inexplicável, se via forçado a desviar o seu olhar, tais eram a força e o poder que de seus olhos emanavam.

No lugarejo onde vivia era, como todos diziam, pau para qualquer obra. Trazia, contudo, a fama de adivinhador e de, às vezes, fazer previsões, mas não gostava de ser chamado de profeta. Todos os que ouviram previsões e adivinhações de Malaquias atestavam ter ele acertado. Citavam vários fatos mundiais, como a morte de um Papa, a queda do Viaduto, no Rio de janeiro, terremotos, vendavais, todos previstos por Malaquias com dias ou meses de antecipação, embora, em suas previsões nunca citou nomes. Previa apenas os fatos. Catástrofes como borrascas, deslizamentos, era comum prevê-los; condoia-se e lamentava pelas vítimas a mostrar desassossego quase em desvario. Mas, não somente tragédias eram objeto de suas previsões. Entre elas, alegres resultados esportivos como quem seria o campeão, quem passaria para as quartas de final na copa do mundo etc.

O Distrito onde vivia Malaquias – morava nos fundos do Bar do Sr. Veigas e lhe prestava alguns serviços gerais como pagamento de pensão e moradia - era habitado por gente muito simples. Mas Malaquias, como sempre afirmava, não precisava de muito para viver. Não tinha vício nenhum e, a ele, pouco bastava para vestir-se e se alimentar. Sentia-se bem no meio daquela gente. De nada mais precisava, pois, sua ambição era o bem estar de todos. Perguntado se não pretendia namorar, casar-se, viver uma vida a dois, melhorar, sempre respondia que não: não queria deixar outros Malaquias sem eira nem beira, embora essa qualidade de nada ter, nada ser e nada querer possuir - percebia-se - não exercia qualquer influência em sua vida, não o elevava e nem o rebaixava por que estava certo de que: “o que está em cima é como o que está em baixo e o que está em baixo é como o que está em cima” (O Caibalion)1 e, se tudo está no todo e o todo está em tudo, por que correr atrás do desnecessário. Complementava dizendo: isto é uma sabedoria milenar que me foi passada pelos meus “eus” antigos. Um dia, se merecerem, vocês vão saber de que se trata. Essas respostas muito implicavam aos seus interlocutores: Malaquias declarava-se analfabeto e o era comprovadamente, afirmavam. Se o era realmente – a sugerir dúvida - como é que tinha conhecimento de uma sabedoria milenar como aquela defendida pelo Hermetismo?

No Distrito havia um Jornalzinho que, à custa de seu editor, circulava semanalmente. Para Malaquias era o "escrevinhador", do qual mantinha certa cisma, mas não era seu inimigo. Nossos santos não combinam, falava entre amigos. Perguntado qual a diferença com o "escrevinhador" respondeu que nada tinha contra ele, apenas receio do que ele “escrevinhava”, poderia ser mal interpretado: na vida há muitos caminhos, explicava, entre eles bons e ruins, dependia do preparo da pessoa em recepcionar a informação. Receava, também, que lançasse seu nome em letras de forma no papelucho que os outros chamavam de Jornal, mas não explicava o receio. É cisma, só cisma, dizia chacoalhando a cabeça como a expulsar maus presságios. Ainda bem que ninguém nem sabe quando nasci. Assim não pode escrevinhar quando faço anos. Se eu não sei e nem me importo com isso, por que os outros vão querer saber e se importar?, replicava. Era um caso singular o herói Malaquias.

Ao encontrar-se, ocasionalmente, com o “escrevinhador”, não o encarava, fugia a demonstrar receio de alguma coisa. Contudo, apesar de sempre citar o provérbio de Salomão, o qual afirma haver tempo para tudo, também para o encontro entre os dois, chegou a sua hora. Várias pessoas sentadas no Boteco do Dico, entre elas Malaquias risonho e feliz destilava suas profecias e previsões, dizia coisas que aconteceriam nos dias vindouros. Calou-se, ficou sério, quando chegou Zé Flávio, o dono do Jornal. Malaquias, sempre receoso, fitava o jornalista, que sempre chamava de “escrevinhador”, furtivamente, com o rabo do olho, na fala simples da gente do lugar. Todos jogavam conversa fora e Malaquias, extrovertido e falante até o momento, ficou quieto, sem nada falar. Enquanto degustavam "bebericos" e guloseimas, as informações fluíam e a conversa rolava sobre o cotidiano. Malaquias, como preso em sua cadeira, ouvia cada palavra pronunciada e observava todas as articulações e gestos, todos os trejeitos de cada uma das pessoas ao entorno da mesa. A ele nada escapava. Parecia que, mentalmente, analisava tudo, sem perder nada, a dar a impressão de que proferiria um veredicto. Provocado, respondia na linguagem de quem perguntava. Era uma das estranhas qualidades de Malaquias: era perfeito imitador de vozes e sotaques, ora falava um linguajar escorreito, ora a língua dos caipiras da região e outras vezes, à dependência de quem o ouvisse, debulhava frases montadas com invejável esmero vernacular, fazia citações latinas, ofertava as traduções, rememorava sábios da antiguidade grega e romana, defendia teses iluministas, lembrava filósofos e escritores de todos os tempos, que ilustraram o mundo do saber e das letras, com seus verbos privilegiados. Malaquias era admirável e muito estranho.

No dia dessa reunião, após participar de vários diálogos e, vez ou outra ter encantado os interlocutores com seu verbo diversificado, e ter se calado à chegada do “escrevinhador”, a uma pergunta sua respondeu, como costumava fazer, com outra, mas de teor a demonstrar sua preocupação, entretanto, nervoso e contumaz: pra que devo eu te responder?, não faz sentido, o que vejo, sinto e vivo, a mim pertence, a mim diz respeito. Todos estranharam a resposta, mesmo porque, Malaquias jamais fora rude ou descortez com alguém. Continuou sua resposta: quer saber para publicar no seu Jornal. És tu que estás escrevendo esta história!, para contar o que?, mexer com a vida dessa gente boa, para que isso moço?. Não vai terminar não: antes do pôr do sol vais perder a noção. Escreve para quando voltar acreditar. Sabes o que acontece quando se perde a noção?! Verás e, olhando para os demais: verão! Levantou-se e se dispunha a sair, mas refletiu e disse: Davi escreveu e eu repito: “Oh quão bom e quão suave que os irmãos vivam em união” (Salmo 133)2. Espera, pediram os presentes, espera aí o Malaquias, explica pra gente o significado de tudo isso. Ninguém aqui é seu inimigo moço. O Zé Flávio não te quer mal nenhum. Malaquias olhou para todos, encarou um a um na mesa, cruzou os braços em X, a mão direita no ombro esquerdo e a esquerda no ombro direito, e disse: “Os Lábios da sabedoria estão fechados, exceto para os ouvidos do entendimento” (O Caibalion)3. Aquele abraço a todos, amo todos vocês. Não ouviu os apelos para que ficasse, cruzou a estrada de ferro e, logo abaixo, entrou no quintal do Bar do Veigas em direção à sua morada. O burburinho, ao entorno da mesa, foi grande, palpites e opiniões os mais versáteis foram ouvidos, mas ninguém, mais uma vez, se aproximou do que, realmente, dissera Malaquias

Zé Flávio, o “escrevinhador”, repórter, editorialista e editor do jornal ficou estupefato com a reação do homem. Não se preocupou com a sentença de Malaquias, ainda por que, dos presentes, nenhum entendeu o verdadeiro teor de suas palavras. Abismados ficaram, não se conhecia bem esta outra faceta de Malaquias. Desde que chegou ao Distrito, somente demonstrou alegria e ludicidade, nunca deixava de dar um sorriso ao cruzar ou encontrar com outra pessoa, fosse adulto, jovem ou criança, tirava o chapéu e, com ele na mão direita curvava-se ao cumprimentar uma senhora ou mesmo uma menina moça; nas rodas que freqüentava eram somente risos e a gargalhada inconfundível do Malaquias.

Zé Flávio, pensativo, tentou buscar explicações, mas não batiam. Informou que, realmente, estava escrevendo a história do Distrito, mas que ninguém sabia. Como pode o Malaquias, que sempre lhe fora arredio, ficar sabendo de algo tão particular? Era certo que junto ao Veigas, ao Sr. Prado, do Empório, Sr. Darcy da Ferraria perguntou sobre Malaquias, a quem ele, de quando em quando, prestava serviços. Contudo, senhores circunspetos e sérios como eram, jamais comentariam a conversa que mantiveram. É de ficar abismado: como pôde Malaquias ficar sabendo dessa história? Deixa pra lá, disse; deixa rolá, algum arrematou.

À tarde, por volta de 18,30 horas, Zé Flávio ao passar em frente à igreja verificou que havia um culto, fato incomum no Distrito, vez que a igreja somente era aberta aos fiéis para atividades pré-agendadas, e estas eram noticiadas semanalmente pelo seu jornal. Naquele dia nada havia sido agendado. Entrou para verificar de que se tratava, afinal era jornalista e poderia estar ali um furo ou uma boa notícia. No centro da nave do Templo, sentiu uma forte luz envolta em inexplicável neblina vindo do altar a ofuscar-lhe os olhos. Precisou olhar firme, protegendo com a mão para conseguir ver o vulto do pregador que, com palavras sábias e divinas, embriagava sua platéia, mulheres caiam em prantos, todos erguiam os braços e louvavam ao Criador saudando-O: Salve o Senhor, Salve o Senhor, Salve o Senhor. Com dificuldade o “escrevinhador”, ante a luz que ofuscava seus olhos, distinguiu o pregador: Era Malaquias. Ficou parado no meio da Igreja com o olhar fixo no pregador, entorpecido pela música que envolvia suas palavras. Não conseguia se mexer nem desviar seus olhos, quando os pés dele começaram a desprender-se do solo e seu corpo, todo vestido com uma dalmática totalmente branca, começou a subir, subir... Não havia dúvidas. O pregador era o Malaquias, e ele estava levitando. Subiu à altura do altar e parou, abençoou a todos e, depois de alguns segundos, iniciou a descida de forma muito lenta. Zé Flávio, impressionado e sem saber o que e como fazer saiu da Igreja. Minutos depois, após ter perambulado perdidamente por poucos minutos, ao voltar à sua normalidade já estava no boteco do Dico contando o que presenciou. Ao terminar o seu relato, ouviu de seus companheiros que a Igreja não foi aberta naquele dia nem naquela hora, e que o Sr. Veigas informou, cerca de três horas passadas, que o Malaquias sofrera um infarto fulminante e havia falecido por volta de 16,00 horas. O médico foi chamado, esteve presente, atestou o óbito. O corpo de nosso Malaquias, disseram-lhe, estava sendo velado no saguão do bar do Veigas, em cujos fundos morou tanto tempo. O Bar foi fechado em sua homenagem.

Até o momento em que Zé Flávio entrou na igreja, esta história foi contada por ele em rascunhos encontrados na redação de seu Jornal. Faz parte da história inacabada do Distrito. Desse fato em diante quem a conta é este escriba por que, conforme previra Malaquias, Zé Flávio perdeu a noção e ficou impossibilitado de terminar a sua história. Eu apenas relatei o que vi e dele ouvi. Não posso, entretanto, confirmar se verdadeiro ou não o final, visto que o “escrevinhador” perdeu a noção. E todos sabem o que acontece quando alguém perde a noção.

Aproveitei este trecho da história inacabada do Distrito, completei o quanto cabia à história de um herói, talvez santo, com certeza um homem bom, justo, livre e de bons costumes, que chamavam de Malaquias, cuja aspiração maior era a felicidade de todos. Que me perdoem ambos: Malaquias e o Zé Flávio, o “escrevinhador”, mas todos precisavam conhecer esta história.

Uberlândia, 28 de Dezembro de 2017.

NOTAS:

1 – Quod superius est sicut quod inferius, et quod inferius est sicut quod superius - O Caibalion, Os Três Iniciados, Ed. Do Pensamento, São Paulo, p. 21.

2 – Bíblia Sagrada, Livro dos Salmos.

3 – O Caibalion, Os três Iniciados, Ed. Do Pensamento, São Paulo, p. 13

ANTÔNIO COLETTO
Enviado por ANTÔNIO COLETTO em 11/01/2018
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