Inconsistências

Não foi uma decisão impensada. Ao contrário, refletiu muito antes de optar pelo celibato. Nunca fora dada a viver sozinha. Houve uma época da vida em que seu maior desejo era ter sua própria família. E em busca deste sonho fora enveredando por caminhos, grande parte tortuosos, caindo em ciladas cada vez mais profundas. E decidira: iria permanecer só.

Desejava outras coisas a não ser chorar amores perdidos. Vê-los com outros amores, depois. Desejava mais do que definhar, fingir-se de feliz o tempo todo. Desejados mais do que ser a amante perfeita, a gueixa e, ao mesmo tempo, a dona de casa exemplar, aquela que cozinhava igual à mãe dele, a confidente, a amiga, a médica, a curandeira, a eterna namorada.

Desejava poder chorar com ele e não por ele. Deitar em seus ombros apenas para assistir TV num domingo à noite. Dormir de conchinha, sem ter sido necessário, antes, desfolhar todo kama sutra. Falar bobagens sem sentido, rir de piadas loucas e brigar — quase — sério, quando o time de um arrasa o time do outro. Passou o tempo e o companheiro que desejava não apareceu. Cansada, seguiu a trilha do “sozinha” (e não da solidão).

Ela decidira viver só. Entregar-se ao trabalho, cursos, viagens ao exterior. Eventualmente, quem sabe, uma noite média de sexo (até porque ninguém é de ferro). Sem culpas e sem futuro.

Isso, até conhecer aquele homem. Rosto moreno, nariz de negro, boca que era um convite a um beijo dos céus. Boca esta que traz sorrisos suaves, capazes de demover qualquer desejo de briga. Lutou contra ele, fingiu que não via, chegou a ignora-lo. Tentou até relacionamentos mais intelectuais, de urgência, para salva-la da tsunami, mas estava fadada ao insucesso.

Passou a viver de chocolate com nozes, morango com champanhe, olhares brilhantes e incompreendidos pela maioria. Passou até a ter uma preferência estranha por caldo verde e achar charmoso comer na marmita a beira do cais, encontrando-se, na realidade, à beira do caos.

Ela decidira viver só, sem levar em conta que navegar é preciso, viver não é preciso (com licença a Fernando Pessoa), mas amar é imprescindível. E aquele navegante, errante e que também não trazia nenhum futuro, que não fosse a intensidade do momento, foi invadindo momentos de sua vida. Sabia que iria acabar. Tudo acaba, até ela acabaria um dia. Porém, não conseguia resistir mais. Deixaria-se levar, ao menos uma única e preciosa vez. Para que fosse infinito, enquanto durasse.

SUZY
Enviado por SUZY em 22/10/2005
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